quarta-feira, 28 de maio de 2025

Rosália, a corta-pilas

Spoiler alert:
é o que o título diz

Nunca na Rua de São Lázaro, tendo em conta a ironia do seu nome em relação aos eventos aqui contados, tanta mortandade, e macabra, aconteceu como no ano passado. A velhice colheu uns, o crime ou o acidente colheu outros.

Primeiro o Zé do Assobio, encontrado a boiar num poço. «Então o Zé do Assobio foi encontrado no poço a caminho do ribeiro?», perguntou um homem da rua, na manhã seguinte, enquanto bebericava um café na padaria. «É verdade... Não quero cá pôr culpas em ninguém, e se calhar até caiu com a bebedeira, mas às tantas foi alguma que o atirou dali abaixo», respondeu o empregado. É que o Zé do Assobio, para além de bêbado, tinha a mania de assobiar e mandar umas larachas às mulheres, velhas e novas, que ali passavam, perto do poço, em direção ao ribeiro para irem lavar roupa. «Coitado... Olha, já não assobia mais...»

Uns meses depois, comentava-se na rua que o Tó Crispado, que ninguém lhe podia dirigir a palavra que ele crispava-se logo todo, tinha sido encontrado morto em casa pelo irmão mais novo. «Então o Tó Crispado foi encontrado morto? Envenenado, disseram-me...», cochichou uma velhota. «Pois, parece que sim», respondeu a Rosália. «Olhe menina, também para as coisas que ele dizia às moçoilas quando elas passavam por baixo da janela...» «É assim a vida...», disse a Rosália a afastar-se da coscuvilhice.

A Rosália era uma jovem mulher, solteira, filha única, já sem pais. Vivia sozinha num pequeno apartamento na Rua de São Lázaro, que era a única coisa que os pais lhe tinham deixado – e já não foi mau. Isso e o emprego numa fábrica. «Um teto e um trabalho? Olarilolé!», respondia o vizinho de baixo, um reformado que ainda fazia uns biscastes, quando a velhota de cima lhe sussurrava que só era pena a Rosália estar solteira.

Bonita e sempre bem educada, poucas vezes se via a Rosália. «'Tadita da miúda... Sozinha, é só casa, trabalho, trabalho, casa», também se dizia pela rua. E onde ela mais detestava ir era à loja do Sr. Agostinho. Nunca gostou dele. Desde catraia que ouvia impropérios daquele homem que tinha idade para ser seu pai – tais como: «Olha a Rosália, sempre linda e aperaltada. Se não ficares para o meu filho, quando te fizeres mulher cá te caço!» Rosália sentia nojo desde sempre. O filho do Sr. Agostinho estava emigrado, a mulher tinha morrido com um cancro e a filha tinha-se suicidado, o que não abonava nada em favor dele, porque se apalavrava baixinho pela rua que a menina, acabada de terminar o liceu, se tinha matado por causa do pai. Mas dentro de cada casa, cada um sabe de si.

Certo dia, a Rosália, enquanto pagava as compras, meteu ao bolso um saco de rebuçados, mesmo nas barbas do Sr. Agostinho. «Vá, desta vez escapa. Por seres tão arranjadinha, eu perdoo. Leva lá os rebuçados.» Na semana seguinte, um saco de sal; noutro dia, um pacote de arroz – sempre sem o Sr. Agostinho ver. E noutra ocasião, a Rosália, que já não podia com o cheiro da mercearia e do homem, quis levá-lo ao extremo da paciência e resolveu fazer um número à séria. Entrou com pressa, foi direita à prateleira dos vinhos, pegou em duas garrafas, virou-se e seguiu em direção à saída. «Então até para a semana, Sr. Agostinho!» O homem não queria acreditar naquilo! A menina, a mais educada e airosa da Rua de São Lázaro, tinha acabado de lhe roubar duas das mais caras garrafas de vinho. Não saiu do balcão para correr atrás de Rosália, mas ficou a moer naquilo... «Ai na próxima vez que cá vieres...»

E houve uma próxima vez.

Rosália entrou no estabelecimento, disse boa tarde e dirigiu-se à secção das especiarias como se nada de mal tivesse feito na semana anterior. O Sr. Agostinho foi atrás dela e, encurralada no fundo do corredor, viu o homem a tirar o cinto das calças. «Agora vais aprender a não ser ladra!» Agarrou-a com toda a força, que também não era precisa muita dada a fineza de Rosália, virou-a de peito contra as prateleiras e deu-lhe três chibatadas no rabo. Rosália não só não chorou como ainda gemeu quase sem se ouvir, largando um sorriso maroto e um olhar de soslaio por cima do seu ombro. O Sr. Agostinho não conseguia acreditar naquilo!

Numa insana falta de noção e de pau feito dentro das calças, pegou em Rosália e levou-a para o armazém. De vestidinho cor-de-rosa – leve, curto e com alças finas –, Rosália foi empurrada, com o ventre para cima duns caixotes, e, sem delongas, estava quase a ser penetrada por um velho tresloucado quando lhe disse com voz macia e harmoniosamente sedutora: «Quer comer-me o cuzinho, Sr. Agostinho?» O homem não podia mesmo acreditar no que ouvira! Nem era tarde, nem era cedo! Nunca tinha visto, nem sentido, um rabinho tão redondinho e espichado. «Que ricos vinte aninhos», dizia o homem a arfar. Rosália ria, agora menos inocente. «Quer na boquinha, Sr. Agostinho?» Agora é que o merceeiro se ia mandando ao ar! Nem as mais atrevidas que lhe tinham passado pelas mãos sugeririam tal coisa!

Rosália agachou-se perante um Sr. Agostinho baboso e de olhos a revirar. Agarrou no marsápio enrugado com mais de cinquenta anos, deu-lhe duas, três esgalhadelas e ZAU! Com a outra mão tinha tirado do decote uma faca de ponta e mola bem afiada.

Perplexo, num misto de dor e de espanto, o Sr. Agostinho perdeu as forças nas pernas e caiu, agarrou-se ao que lhe restava da pila, que esguichava sangue a bom esguichar, e berrava de boca bem aberta. Aproveitando isso mesmo, Rosália enfiou-lhe aquele bocado de carne rançosa na boca e espetou-lhe a faca várias vezes numa coxa para o imobilizar o máximo possível. Atirado ao chão, a gritar de agonia, Rosália, com a mesma arma, fez-lhe dois furos na garganta. O hediondo e abusador Sr. Agostinho ali ficaria até ao último gargarejar, afogado com o próprio sangue e sem meio caralho.

Rosália, lançando um último olhar àquela criatura que ela achava imunda e asquerosa, lavou as mãos no lavatório do armazém enquanto ouvia o moribundo a sufocar, arranjou-se como pôde, desamarrotando o vestido cor-de-rosa, e saiu daquele espaço escuro e cheio de humidade, quiçá com ratos e baratas. Depois de ter pegado em mais duas garrafas de vinho, como já tinha feito noutra ocasião, perto da porta de saída deu de caras com uma freguesa que lhe perguntou pelo Sr. Agostinho, pois não era hábito ele não estar junto à caixa registadora.

Rosália respondeu: «Espere um bocadinho. Pode ser que ele (se) venha rápido.»


(29/11/2024)

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