quarta-feira, 28 de maio de 2025

as ondas que teimam em trazer-me de volta

Estou velho. Nem sei se estou cansado do corpo ou da vida. Os meus cabelos são brancos e raros, as minhas pernas custam a mexer e os joelhos chiam como dobradiças enguiçadas, os meus braços tornaram-se finos como palitos, as minhas mãos são o dobro do tamanho do que deviam ser, cheias de calos nos dedos e nas palmas, as unhas crescem grossas mas acabam por se partir como palha seca. A minha respiração é calma, mas está longe de me trazer serenidade. Custa-me ter os olhos abertos, mas quando os fecho vejo coisas que não quero recordar. A visão romântica do mar e nele navegar é uma mentira. É uma prisão, uma desgraceira, uma imundice, uma incerteza. A minha pele é tão rija, tão áspera e tão adusta que não há sol que me faça mais enegrecido. Mas não é só por fora que estou chamuscado.

Estou tão velho e tão cansado. Mereço descansar. Enfrentei ventos selvagens e nevoeiros espessos como nunca sentirão em terra firme, e convivi com homens desajustados, ignorantes, brutos. Pergunto-me como sobrevivi durante tanto tempo. Combati ondas gigantes que me queriam engolir, sugar e desfazer, mas foram sempre essas ondas traiçoeiras que me trouxeram de volta. E sempre que tentei deixar-me ir, regressei. Pergunto-me porquê.

Vi ir embora quem talvez merecesse menos do que eu. Como naquele dia em que um marujo ainda muito verde foi pela primeira vez arreado à água, no seu pequeno dóri. Maldito dia, o mar não estava para brincadeiras e para pouca experiência. Mas ele lá tinha de ir. O homem responsável pelo rapazito estava muito doente, a ferver em febres alucinantes no seu beliche. Era um homem tão grande e forte que o cubículo onde dormia era pequeno demais para tamanho porte. A doença derreteu-o em poucos dias, sem nunca saber o que tinha ocorrido lá fora, na labuta ingrata. E lá tinha de ir o receoso protegido na sua vez, naquele dia em que o mar rugia, ferozmente suplicante, por oferendas. Já me esqueci do nome do moço e também não o quero lembrar, mesmo que fosse capaz. Tão verde e imaturo, uma pena. São estas coisas que vejo quando fecho os olhos. Também fui descido ao mar nessa hora matutina. Não havia ponta de sol, era uma noite de dia, as nuvens estavam cinzentas e carregadas, o mar compacto batia nos nossos botes e desintegrava-se em gotas que nos feriam a cara, como minúsculas pedras aguçadas. Tentei abeirar-me o máximo que podia do infeliz, mas nada a fazer contra correntes e vagas com uma vontade tão própria e singular que nunca iremos compreender. Cada pescador foi levado para onde não pretendia. Era um dia de sorte ou de azar, não havia talento que prevalecesse. Também eu fui arrastado para outras bandas, afastado do moço. Ao longe via as ondas a crescer. Eram escuras, mais escuras do que as nuvens que tapavam o firmamento, e no cume uma espuma branca e espessa coroava o marchar da morte. Cada vaga daquelas trazia um carimbo de mortandade, um selo invisível que vinha já a marcar o seu destinatário, só não sabíamos qual de nós seria virado e engolido. Nunca deveríamos ter ido ao mar naquele dia, mas o porão estava tão vazio que o capitão preferiu a sua honra e a do armador em terra descansado do que a vida dos seus homens. Não foi preciso muito tempo até o alarme soar para que regressássemos. Foi tudo tão rápido que nenhum homem tinha lançado sequer a linha à água, mas foi o suficiente para o desastre acontecer. O verde marujo foi levado para longe de mim, de nós. Os mais fortes e experientes remaram contra tudo o que se lhes opunha, e, por entre façanhas e atos de puro instinto de sobrevivência, por entre crenças e derradeira expiação de pecados, todos os veteranos, eu incluído, se acercaram do navio-mãe. Todos menos o moço. As ondas que me trouxeram de volta foram as mesmas que, ao separarem-se de mim, se viraram para ir de encontro ao rapaz que mais não regressaria. Metro a metro, ora o víamos na crista de uma vaga, ora o perdíamos da visão quando se formava um vale líquido entre as ondas revoltadas, como colinas. Gritámos para que remasse. Gritámos sem parar, mesmo sabendo que não nos ouviria, pois já estava no centro da tempestade, mas continuámos a chamar por ele, por um nome que esqueci. Até que a maior onda que alguma vez vi se ergueu de rompante em direção ao céu e desceu impactante contra o desgraçado que nem um bacalhau teve a felicidade de pescar, virando-lhe o dóri, destruindo-lhe a madeira do casco e dos remos, esmagando-o como se duas paredes se fechassem uma na outra. As ondas que me trazem de volta são aquelas que levam outros para uma eternidade que ainda desconheço. E é por isso que nunca quero fechar os olhos, por mais que me custe, porque são estas as coisas que vejo. Dizia-se que tinha deixado uma namoradinha em terra, à sua espera. Ouvi-o uma vez dizer que se ia casar em breve e encher a casa de filhos para ser feliz sempre que regressasse. Nem uma carta escreveu, porque não sabia escrever e não queria que escrevessem por ele, mas tinha sonhos. Tão ingénuo. Hoje está com o mar, e os filhos que não deixou são a sua solitária companhia para sempre. E quando não fecho os olhos, pois não quero rever todas estas coisas, é o som do mar, porque nunca saí de perto dele, que teima em trazer de volta estas memórias.

Sempre que peço para ir-me daqui, deste plano feito de areia ou de chão firme que nunca balança, as ondas que teimam em fazer-me regressar trazem ao pensamento outro homem do qual o nome também já se me esfumou. Este escravo da água salgada também tinha sonhos, mas não eram desejos, eram imagens em movimento que o subconsciente produzia enquanto passava pelo sono nas poucas horas que podia dormir. E é de um sonho muito particular que se trata esta recordação. Quando fecho os olhos de cansaço, imagino aquele sonho que ele nos tinha contado certa manhã antes de sermos arreados ao manto de água. Contou-nos então que tinha acordado muito sereno por causa do sonho que teve, uma perceção muito vívida de que caminhava livremente no fundo do mar ao lado dos dois filhos. Disse-o com uma tranquilidade tão pura como nunca lhe tínhamos visto ou ouvido. E foi tão estranho vindo de um homem efusivamente aguerrido e pouco dado a sentimentos. Nunca falava dos filhos, nem da terra que o viu nascer, da qual eu nunca soube qual era. Remava como ninguém, era quem ia para mais longe, e a sua voz era, por vezes, mais altiva do que o assobio cortante de ventos que aterrorizam. Vimo-lo, certa vez, a erguer-se no seu dóri, de braços abertos, virado para uma onda que se formava contra ele. Desafiou os deuses do mar e venceu. Aquela vaga, que iria atingir uma altura tenebrosa, tão depressa se esticou ao alto como desvaneceu perante tal espetáculo de um só homem contra a natureza. No regresso ao navio-mãe, o excelente pescador e remador ria com desdém, sem medo, mostrando aos outros como se fazia, como se combatia o incombatível. Mas naquela manhã, quando nos contou o sonho, toda aquela casca rija se tinha tornado numa fina camada de manteiga derretida. Era dia de mar calmo, uma planície autêntica, nem uma nuvem se vislumbrava, a pescaria seria boa. Fomos arreados, cada um na sua vez e a soltar vivas uns aos outros sobre um dia que iria ser de grande sucesso. Passado um par de horas, um repentino e denso nevoeiro assolou aquele banco de pesca. O mar continuou manso, mas a neblina era tão cerrada que não se via um palmo à frente dos olhos. A ronca do navio soou imediatamente e todos regressámos conforme pudemos, através do instinto mais básico da audição. Todos, menos o homem mais bravo que alguma vez vira. Não sabemos como, nem porquê, nem por quem, mas foi abocanhado pelo nevoeiro. Desapareceu sem deixar rasto, nem o seu búzio se ouviu, se é que fez uso dele. À medida que nos íamos aproximando do som da ronca, o nevoeiro foi levantando e ali estávamos todos, devolvidos à ténue segurança do navio-mãe, por ondas que teimam em trazer-me de volta. Todos menos aquela alma dura em corpo ainda mais duro. Nem homem, nem bote. Nada. E quando fecho os olhos, vejo-o a caminhar livremente no fundo do mar com os dois filhos. Passado dois dias, atracámos numa pequena povoação portuária e havia um telegrama endereçado ao desaparecido. Leu-nos o capitão sobre os dois filhos do sonhador. Tinham morrido tuberculosos. O mar lá sabe o que faz, tanto sobre os que leva como sobre os que faz regressar, como eu, que não consigo ser mais teimoso do que as ondas que me trazem sempre de volta.

Estou exausto, mas as ondas que insistiram em trazer-me de volta continuam a trazer-me também lembranças. Gostava de me recordar de quentes momentos de paz e despreocupação, mas o baque dessas ondas é tão retumbante que é impossível fugir a memórias de desventura. Quando fecho os olhos no preciso instante em que uma onda rebenta, relembro um desalmado caído em desgraça. Também já não me lembro do seu verdadeiro nome, só das palavras maldosas com que o tratavam. Ora era o cornudo porque se dizia que a mulher se deleitava de prazeres com outros homens em terra enquanto este sofria e mal suportava as escoriações interiores e exteriores da faina, ora era o manco porque, certa ocasião, ficou com uma perna horrivelmente presa entre o remo e a borda do dóri, ora era o tolinho porque falava sozinho e nada do que dizia se percebia. Tinha-se tornado numa sombra desbotada do homem robusto, digno e decisivo que tinha sido noutros tempos. Era penoso vê-lo regressar com pouca pescaria, era doloroso ouvir o que diziam dele, tanto na sua frente como, pior ainda, nas suas costas. É incrivelmente triste ver o que o mar é capaz de fazer a alguns homens, tanto os que se tornam vis e mesquinhos seres como os que agoniam com isso. Gozado por quase todos, o seu olhar de viés perante o que ouvia foi-se tornando cada vez mais ominoso e as palavras que dizia baixinho para si mesmo eram cada vez mais impercetíveis. As ondas que me traziam de volta, com o bote cheio, a transbordar de bacalhau, eram as mesmas ondas que o faziam regressar a ver-se o fundo da sua minúscula embarcação, sem quase nenhum peixe. Ainda hoje não aguento tamanha pena, mesmo tão velho e distante daqueles dias. A minha velhice e cansaço em nada amainam esse sentimento. Havia de ser deixado em terra, em qualquer porto, deixado à sua sorte, longe de casa, porque para a faina já não servia, era o que se dizia na sua cara nas poucas horas de convívio enquanto se comia e bebia o que dava para comer e beber antes de se dormir o pouco que dava para dormir. Num dia de mar bravo e de chuva copiosa, as ondas trouxeram-me de volta com uma considerável pescaria dadas as circunstâncias, ao contrário do desafortunado, sem um único bacalhau. Estava mais do que visto que tal ia acontecer, fosse mais tarde ou fosse mais cedo, calhou ser naquele dia. O desalentado foi alvo do maior gozo de sempre, mas, por entre todas as maledicências, havia dois tripulantes, com nomes que não interessam por causa de conspurcarem a honra humana diariamente, que ultrapassavam todos os limites, para lá de cornudo, manco ou tolinho. O desorientado, a ouvir aquilo tudo, depois de horas a fio no mar, isolado no seu dóri, a mandar linha e anzol atrás de linha e anzol e a nada tirar do fundo daquelas geladas águas, armado com uma longa e afiada faca de escalar, atirou-se a um dos seus rivais sem que este estivesse à espera. Lembro-me bem, porque as ondas continuam a trazer-me de volta todos os segundos passados naquela horrível vida, quando aquele homem, agora magro, a definhar, se lançou às costas do inimigo, desferindo-lhe um golpe profundo na garganta. O outro maldizente, mesmo ao lado, agarrou o esfaqueador, empurrou-o para o chão e, no meio da confusão instalada, por entre pés e braços que depressa se misturaram para acabar com o incidente, tropeçou, caindo em cima do corpo do adversário. Enquanto o ferido estrebuchava no chão do convés, a revirar os olhos e a jorrar sangue negro pelo lado direito da garganta, como quem diz, a dar as últimas, o companheiro, que o defendeu tarde demais, batia, com pesados murros, no atacante, mas cada vez menos, com menor preponderância e energia. Enquanto todos os outros marinheiros debatiam sem se perceber nada e quase se agrediam, ou outros que se abeiravam do esfaqueado, enquanto o capitão mirava de cima, desde a casa do leme, enquanto tudo e mais alguma coisa que se reaviva em mim através das ondas que batem na areia e me trazem tudo de volta, a força daqueles murros tornou-se nula. É que o gozão não só caiu em cima do desastrado a quem chamavam cornudo, manco e tolo, como também caiu, de peito aberto, na ponta aguçada da faca que se enterrou em si. Foi nesse preciso momento que o capitão e o seu imediato acabaram com a bagunça através gritos de ordem e arremesso de corpos enfurecidos com olhos esbugalhados de lágrimas raivosas e com ânsias de voltar a casa. E foi também aí que percebi, como tão bem recordo quando fecho os olhos, que aquele desafortunado homem tinha assassinado os seus dois constantes perseguidores quando esforçadamente saiu debaixo daquele peso viril. Nas mãos já não tinha a faca, nas mãos tinha o sangue de dois outrora companheiros de todas as horas. Tentou limpar essas mesmas mãos, que tantas linhas e anzóis lançou ao mar, à sua camisola preta e grossa de gola alta, mas aquele líquido espesso e vermelho não se descolou da pele. Desorientado, a chorar e a pedir perdão, todos os tripulantes o olharam com perplexidade. Rodeado por homens que se estavam a transformar em animais irracionais, foi pé ante pé, para trás, que devagar se aproximou dos limites do navio para num ápice de desespero se mandar a si próprio borda fora. Aquelas ondas, que se obstinam a trazer-me de volta, levaram consigo, para intermináveis fundos, um desgostoso miserável que me aparece na memória sempre que, contra a vontade, fecho os olhos de cansaço.

Não sei a minha idade, só sei que estou velho e cansado. Se calhar tenho trezentos anos e trezentas mil ondas teimaram em trazer-me de volta. Não sei como e por que é que sobrevivi tantas vezes e tantos anos. Pergunto-me porquê. Há quem diga que sou um sábio, mas renego. Julgo até ser tão desajustado, ignorante e bruto como os outros. O engenho de marujo perseverante já não está em mim, apenas acerto aqui e ali nas horas consoante a posição do sol, sei dizer o nome de um ou outro astro e pouco mais. Estou velho e cansado, e simplesmente não me deixam ir embora. Sim, as ondas, essas mesmo. Se calhar ando há duzentos anos a contar as mesmas histórias que quero esquecer e não sou capaz, porque é quando fecho os olhos para morrer que elas se reavivam com mordaz afinco, e, assim, duzentas mil ondas teimam em trazer-me de volta sempre que me lanço ao mar, que é, enfim, a minha verdadeira casa.


(05/03/2025)

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