«Quem és tu?», perguntou-me um velho que me encontrou a atirar pedras ao rio. Eu não falava com ninguém há meses, até perdi a conta. Aliás, não falo sequer, nem comigo próprio. Por alguma razão que me transcende, decidi falar imediatamente. A minha resposta foi longa e o velho ouviu-me com atenção e aparente carinho.
«As minhas perspetivas tornaram-se cada vez menos promissoras, é difícil acreditar no que quer que seja. Perdi a confiança, perdi a fé, perdi um mundo ao qual não consigo regressar. Não digo verdades, não digo mentiras, simplesmente não falo e os pensamentos são turvos. Não há significado, é tudo dormente e fico cheio de medo. Quando eu ainda falava com pessoas, diziam-me que há mais do que uma hipótese. Abençoam-me, desejam-me tudo de bom, mas mal sabem que a minha juventude foi roubada, traficada, vendida. Fiquei neste corpo sem alma. Deambulo por aqui e por ali, sozinho. Um dia novo, não podia ser pior!
Há um nevoeiro cerrado que esconde a luz. Tão forte que me apaga a consciência. Já fui feliz, já tive um papel, mas, aos poucos, sempre que eu chegava a um sítio, as pessoas já não ficavam. Iam embora com poucas ou nenhumas palavras. Comecei a aprender o silêncio, depois comecei a aprender a solidão. Já nem se dignavam a mentir, simplesmente ninguém aparecia. Estou preso numa cidade de vidro que parece frágil, que parece fácil de estilhaçar, mas não é... Está feito, não quero saber!
Hoje sou um zero, nada. Não importa o que fui ou onde estive. É este o filme da minha vida que ainda ninguém viu e que estou a contar agora. É um bom guião? Se calhar não. Não importa, e já mal me lembro de quando diziam para ir em frente, mesmo que o ouça com atenção nos confins da minha memória. Se chamarem por mim, já não quero saber. Mas ninguém chama por mim. Se alguém por acaso falasse comigo e me dissesse que sou importante, será que pensava duas vezes? Como seria? Não sei, já não me importo. Imploro por uma mudança, mas não com todas as forças necessárias. A decisão está tomada!
Por favor, ajuda-me a desaparecer, a dissolver-me completamente num sono profundo e eterno. Tenho a mente feita em papa e as mãos magoadas. Ajuda-me a desaparecer e promete que nunca mais saberei o que é conhecimento. Não quero ficar neste mundo aberto enquanto me sinto um pássaro numa gaiola. Vais ajudar-me a ter coragem? Vais ajudar-me a acreditar numa mudança? Uma mudança para um sítio onde não há pesadelos e onde não sinto a falta de alguém. Se me ajudares a fugir, eu sei que vou respirar outra vez. Vou respirar num isolamento profundo sem ter que pensar, sem sentimentos que magoam, sem me preocupar com o significado das palavras que não conheço. Solidão é uma doença, mas isso só acontece aqui e não no lugar para onde quero que me leves.»
«Vá... Já caminhaste muito», respondeu-me o velho. «Perdeste tudo numa inundação de incertezas e de traições, mas vem sentar-te comigo num bar, vou falar-te de progresso e isso vai fortalecer o teu fino sangue. Já ninguém sabe o teu nome, mas o meu também não sabem. Vou trocar-te as memórias por vazio.»
«Por que é que demoraste tanto?», perguntei. O velho respondeu: «Já te vi há muito tempo. Encontrei-te. Mais ninguém te encontrou. Há quanto tempo te dão como perdido? Já nem sabem o teu nome. Vamos desistir de tudo por uma coisa boa, por uma canção destinada a não ser cantada. Tu é que foste embora. Não te lembras? Esperaram muito e fartaram-se de esperar. Ias despedaçar os sonhos de toda a gente e não quiseste saber, e agora choras? Foste egoísta e agora julgas os outros por não responderem ao teu chamamento? Isso não significa nada para mim e vou finalmente conceder-te o desejo de desaparecer, mas primeiro saberás por que é que estás aqui.»
Um feixe de luz atravessou-me os olhos e vi-me sentado numa cadeira, a percorrer os dedos pela minha pele: cara, peito, braços. Como se o estivesse a fazer pela última vez. Ouvia-me a pensar: «Estou muito feliz por teres vindo.» Mas aquela felicidade depressa se tornou em tormento. A pessoa tinha realmente vindo, mas era para uma curta visita, nem cinco minutos, um adeus. Ela ia embora para sempre. Vi-me a escrever uma nota e a beber de um copo opaco. A minha cabeça tombou.
O papel dizia: «Os meus cumprimentos a todos de quem gosto. Diz-lhes que vou ter saudades.»
(27/12/2024)
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