quarta-feira, 28 de maio de 2025

Inocêncio - à espera da morte ou da revolução

Inocêncio foi condenado à morte. Na sua cela há três dias, após lida a sentença, a espera pela chamada rumo ao cadafalso estava a alongar-se mais do que o julgamento, que fora operado numa questão de minutos após a sua detenção.

Julgava-se e sentenciava-se tudo e mais alguma coisa, grandes e pequenos delitos. As prisões estavam lotadas e o corredor da morte era um corrupio para lá e para cá. Havia tantas execuções diariamente que Inocêncio teve de esperar pela sua vez, ali na sua cela, a penar de ansiedades. Não havia hora marcada para subir ao cadafalso e receber a corda à volta do pescoço. Era como se tivesse uma senha e simplesmente esperasse pela sua vez, só que na lavandaria pode desistir e voltar mais tarde, aproveitando assim para ir tratar doutros assuntos. Mas enjaulado, a senha invisível que lhe tinham dado à força representava uma espera obrigatória para um fim imutável, não podendo optar por primeiro ir comprar o jornal e depois voltar à lavandaria para levantar o casaco que tinha mandado limpar a seco.

Havia crimes, como os de colarinho branco, que eram recipientes de julgamentos que demoravam meses, anos até, e acabavam por dar em nada. Os que iam perante o juiz, conseguiam antes fugir do país ou envelheciam, ficavam doentes com a idade, por vezes morriam na serenidade dos seus lares sem sentença dada ou safavam-se com caríssimos advogados, tanto de preço como de reputação, conhecedores de como encontrar buracos na Lei que se dizia perfeita. Mesmo que o senhor fulano de tal matasse e que não houvesse álibi possível, os anos de encarceramento eram reduzidos à custa do nome de família que ostentava ou sob o pretexto de que os seus estudos e bom comportamento eram justificação mais do que plausível para que os tribunais fossem brandos, porque depois do tempo de prisão, algumas vezes domiciliária, podia oferecer algo de útil à sociedade na Medicina, na Química ou na Física, nas diversas Engenharias ou, espantemo-nos, na elaboração de Leis que pusessem a nação no caminho do progresso.

A história de Inocêncio, e outros que tais que sobreviviam como podiam nas classes baixas, era bem diferente. Roubasse, batesse, violasse ou matasse, a sentença era dada com uma brevidade alucinante. Os réus e as rés, sabendo-se intimamente culpados ou inocentes, não tinham qualquer esperança de redenção. Sabiam que dali, daquele banco frio, o caminho era feito para a cadeia, para uma gaiola também fria. Ou para a morte. Dizia-se até que os juízes, na sua hora de almoço, ainda iam na sobremesa, antes de se dirigem ao salão de justiça, e já as sentenças estavam dadas. Cada colherada de natas do céu representava um réu e simbolizava uma ordem de prisão de dez, quinze, vinte anos, às vezes perpétua ou mesmo pena capital. Grupos de cinco, dez ou vinte réus sentados uns ao lado dos outros recebiam em série as sentenças, com os juízes a terem ainda mousse de chocolate nos cantos da boca.

Inocêncio tinha matado, disso não havia dúvida. Para além das testemunhas que tinham visto tudo desde o princípio, também um polícia, que por ali perto andava a fazer ronda, tinha chegado ao local no momento final da tragédia. Pobre, desempregado, sozinho na vida, Inocêncio era um paz de alma e muito educado. A cabeça, apesar de certinha, nunca deu para a escola, e em adulto nunca teve um trabalho que durasse muito tempo, pois havia despedimentos coletivos ou tinha de ir para longe de casa semear e apanhar fruta, apenas para ser explorado ao pouco ou nada receber de salário, ao ser mal alimentado e ao dormir em casernas sobrelotadas que cedo começavam a feder.

Sem uma única moeda, sem conseguir emprego e cheio de fome, Inocêncio decidiu roubar. Sempre a correr, entrou numa mercearia distante da sua rua, onde nunca se tinha aviado, pegou em tudo o que conseguiu levar nos braços e, ao passar pelo balcão da caixa registadora, o dono fê-lo tropeçar, pregando-lhe uma rasteira. Enrolados à porrada no passeio da via pública, o merceeiro era muito mais forte do que Inocêncio, até porque estava esfomeado e sem capacidades para caçar sequer uma mosca chata. Inocêncio ainda tentou enfiar os dedos nos olhos do merceeiro para o expulsar de cima de si, mas as forças eram mesmo muito poucas e estar a ser estrangulado também não ajudava. Ninguém se metia, tudo olhava com espanto e apreensão. A espernear, já sem tentar meter as mãos ao outro homem, começou a apalpar o chão à sua volta à procura de paus, cacos, pedras, qualquer coisa, grande ou pequena, que desse para bater no furioso antagonista que estava prestes a tirar a vida a um pobre que só queria comer. A calçada estava a ser reparada e mesmo ao lado deste David e deste Golias estava um monte de pedras à distância de um braço. Inocêncio pegou na primeira coisa rija que sentiu entre os seus trémulos dedos e com uma rapidez instintiva lançou o braço e a mão recheada por uma pedra em direção à cabeça do merceeiro. Uma, duas, três vezes, uma rocha bicuda fora enfiada na têmpora do dono da loja. Com sangue a escorrer para a cara de Inocêncio, o seu adversário começou a perder o tino e tombou para cima de si. Inocêncio não tinha estímulo físico para tirar o moribundo de cima do seu esfomeado corpo e num instinto animal de sobrevivência, não esquecendo que esteve quase a perecer esganado, deu com a pedra mais uma, duas, três vezes na nuca do comerciante que morrera passado minutos, vítima dos ferimentos.

Inocêncio foi preso ali, de manhã, pelo polícia que apareceu e ainda viu as últimas pedradas serem dadas. Obrigados a irem à esquadra, todos os transeuntes que viram aquele espetáculo selvagem foram instigados a assinar um papel que confirmava o que naquela rua se tinha passado. Depois do almoço, ainda com o juiz a chuchar os dedos com restos de pudim, Inocêncio foi condenado à morte. O advogado de defesa, para além de fantoche, plantado pelo sistema rachado, não falou e só assinou a ata do processo e siga que há mais para sentenciar. Um levou dois anos de cadeia por ter desenhado a cara de um ministro no corpo de um jumento vestido com um manto de ouro, o amigo levou cinco por ter assaltado a caixa das esmolas da igreja, um outro apanhou sete anos por ter batido num polícia que não lhe permitiu apresentar queixa contra um funcionário público violento, um estrangeiro sem documentos recebeu ordem de deportação e Inocêncio foi condenado à morte. Tudo isto em menos de quinze minutos.

Mas que raio de país é este? Boa pergunta, e tem resposta. Dizem que é uma democracia, e de facto há eleições, mas é tudo muito manhoso. O regime vigente foi instalado por via de eleições livres, através de um eleitorado descontente que papava tudo o que o partido, depois vencedor, dizia. Com uma primeira maioria relativa, o governo fez de tudo para responsabilizar os ministros de legislaturas anteriores sobre o que estava mal e continuou a semear discórdia entre a população, a meter trabalhadores contra trabalhadores, trabalhadores contra pobres e pobres contra pobres com larachas baratas: se não ganhas mais é porque não te esforças, andas a pagar com o teu trabalho àqueles que não querem fazer nada, se não tens trabalho é porque não queres trabalhar. Inocêncio, sem querer, estava neste último grupo. «Olha, lá anda aquele a pedir esmola. Que vá trabalhar, não quer é fazer nada! Ando eu a lixar-me toda para pagar a rica vida desta gente!» Ou: «Estive dois meses de baixa porque parti um braço e recebi uma ninharia. Ando aqui que nem posso, de volta à fábrica, e esta gente a recebê-lo todo!» E o bolo ficava completo com a ideia de que os orientais e magrebinos estavam a roubar os empregos e as mulheres de quem cá tinha nascido.

O regime ficou consolidado quando, num golpe de secretaria, o governo forçou eleições antes do tempo previsto ao demitir-se. Era preciso um apoio firme do povo e esse apoio transformou-se numa maioria absoluta resultante de novas eleições. As ruas encheram com retumbante vitória! Agora sim, tudo iria ser perfeito, a pobreza iria acabar, toda a gente teria emprego, os reformados iriam receber muito mais, os antigos combatentes em guerras coloniais seriam ressarcidos devidamente, os emigrantes regressariam, os estrangeiros voltariam para a terra deles, a dívida seria reduzida como nunca antes, as cidades e as vilas estariam mais seguras, os jornais mais limpos, lésbicas e homossexuais caladinhos, toda a religião que tivesse Deus e Jesus Cristo no seu centro voltaria a orientar os lares. Mas, como dito, era tudo muito manhoso. De quatro em quatro anos, a contestação podia não ser muita, mas as arruadas de apoio ao partido e àquele regime eram cada vez menos frequentes e com menos apoiantes. Certo é que o governo se ia mantendo pela suposta força das urnas e a oposição ia desaparecendo. Alguns líderes e dirigentes que se opunham ao regime deixavam de exercer as suas funções publicamente, outros saíam do país e outros, através de acusações muito pouco claras de que tinham cometido crimes, geralmente no foro da corrupção e da prevaricação, eram presos e silenciados. Um ou outro apareceu morto na cadeia ou em casa. Matou-se, diziam os comunicados oficiais e as notícias.

Falava-se, mas cuidado, não se falava assim tão à boca cheia. Os locais onde se podia tentar mudar alguma coisa, como assembleias municipais, estavam encerrados ao público e todas as decisões, incontestáveis, eram partilhadas em edital. Falava-se neste ou naquele café, mas não se passava daí, até porque havia sempre alguém apoiante do governo que, repetindo o que os ministros diziam, calava as vozes mais dissonantes. Ações de protesto nunca eram aprovadas, porque iriam causar distúrbios à ordem pública e a quem queria trabalhar, e as manifestações espontâneas eram imediatamente dispersadas com cargas policiais. «Estes também sabem muito... Que trabalhem mas é, que eu também trabalho!» Greves, então, era para esquecer; tal palavra já tinha praticamente desaparecido do vocabulário dos trabalhadores. «O meu patrão faz tanto por nós, esta gente não quer é fazer nada!» Os jornais glorificavam as práticas do regime e as caricaturas, que antes criticavam, tornaram-se propaganda cheia de positivismo pró-governo. Opinadores de caneta mais afiada e humoristas esfumaram-se gradualmente até ao vazio total.

A Igreja tornara-se tão poderosa como nunca visto nesta geração. Não se ia buscar alguém a casa para ir à força à Eucaristia Dominical, mas pairava uma necessidade cega e muda que puxava famílias inteiras à igreja da cidade ou da vila. «Ai, aqueles tristes sem nada, nem um trabalhinho arranjam... Se não fosse a Paróquia, nem uma sopinha tinham!» A Igreja não perseguia e havia uma certa liberdade de crença, desde que assentasse no Deus da Bíblia Sagrada e na tradição da família, mas usava a caridade para controlar e lavar cérebros. Os padres e bispos não tinham por hábito denunciar supostos dissidentes, mas a Palavra de Deus misturava-se sem escrúpulos com a estadia do governo no poder. «Deus assim quis e, com muita oração, Nosso Pai vai salvar este país através da liderança do Senhor Primeiro Ministro!»

A segurança e o decoro que agora se fazia sentir em avenidas, ruas e becos não era assim tão real como o regime fazia crer, até porque os centros prisionais estavam cheios, a rebentar pelas costuras. Nem mesmo o temor à prisão perpétua ou à pena de morte, reinstauradas após a primeira maioria absoluta, porque afinal estava no programa e o programa é para cumprir, meteu medo aos delinquentes. O gandulo que só roubava passou também a sequestrar, o ladrão que só ameaçava passou a matar e o necessitado, acusado de querer é mamar, acabou por se render aos pequenos crimes para comer. «Esses é que são espertos! Lá dentro têm cama e três refeições por dia!»

Inocêncio não era um criminoso profissional, nunca tinha roubado e fê-lo por fome, nunca tinha falado mal de ninguém e sempre tentava dar uma palavra de alento aos poucos, também infortunados, que ainda lhe falavam, mas naquele dia matou para não ser morto. Inocêncio lá estava, numa cela fria, com pouca luz, à espera de ser chamado para subir ao cadafalso e dele cair esticado. Inocêncio penava, tinha dores no peito, tremia, tinha ataques de pânico, mas sempre em silêncio. Desde aquela fatídica manhã só se ouvia a sua voz para confirmar o seu nome.

Como dito, ainda se falava, mas com cuidado, só que ao longo dos anos já não se falava mais. Qualquer palavrinha que fosse contra o regime, calabouço com ele ou com ela. A contestação passou a ser evidente e alguns grupos começaram mesmo a pegar em armas e em pequenas bombas de fabrico rudimentar e caseiro. Não tinham hipótese. Mortos nas ruas ou na forca, eram às centenas. E lá estava Inocêncio com a sua senha invisível. Não queria ter nada a ver com nada, não queria saber do Primeiro Ministro e pouco ou nada se importava com a religião, só queria um trabalhinho decente e comida na mesa. Mas matou, e a sentença era ser morto.

Então, ao início do quarto dia lá disseram a Inocêncio que tinha chegado a sua hora. Não havia tempo ou dinheiro para uma última refeição, mas um capelão ou um cigarrito ainda se arranjava. Inocêncio quis o cigarro. Cinco minutos de solidão para falar consigo próprio e mais ninguém era o que lhe restava. Depois, mais uns dez minutos de calvário e o fim. Inocêncio dispensou o capelão, porque afinal não acreditava em Deus, nem no Diabo, nem no Paraíso, nem no Inferno. O sacerdote para quem realmente necessitasse, para morrer com um pouquinho de paz interior, esperando que as palavras sobre a entrada no Reino dos Céus, porque Deus a todos perdoa, fossem verdadeiras.

O seu guarda, a quem chamamos só Guarda, porque tornou-se hábito as forças da autoridade não terem crachá de identificação, deu-lhe um cigarro, acendendo-o seguidamente. Inocêncio fumou em silêncio. Tinham passado cinco minutos e continuava a fumar. Dois outros guardas, que iriam levar o sentenciado ao armazém onde estavam a realizar os enforcamentos, chegaram às grades da cela, bateram com o cassetete na estrutura metálica e chamaram pelo seu nome. Inocêncio manteve-se em silêncio. «Está a fumar, é o último desejo», disse o Guarda aos dois colegas. Mais cinco minutos se passaram, mais dez, mais quinze, mais vinte, Inocêncio sempre a fumar em silêncio e na companhia do Guarda. Os outros dois polícias prisionais já tinham saído dali, já tinham ido buscar outros condenados. Por mais chamadas que tivessem sido feitas ao longo do dia, Inocêncio, sempre a fumar aquele cigarro, não era levado, nem o Guarda saía dali. Passou um dia, passou outro, passaram semanas, já tinham passado meses, centenas de enforcados, e Inocêncio sempre na sua cela a fumar silenciosamente. Quando o vinham buscar, viam que estava a fumar o seu último cigarro e iam à procura doutro condenado à forca. Se ainda estava a fumar é porque os cinco minutos concedidos não tinham passado no relógio do Guarda. E muitos cinco minutos se passaram ao longo de anos.

Veio uma peste, um vírus, uma doença que atacava a respiração e fazia a pele ter úlceras muito feias, como se houvesse úlceras bonitas... Ceifava vidas a torto e a direito, mais rápido até do que a forca e as balas do regime. Ao início, o governo desconsiderou a situação, mas ao fim de poucas semanas decidiu tomar medidas, porque os hospitais estavam atulhados de enfermos e começavam a haver valas comuns com cadáveres que, pelo sim pelo não, seriam incinerados. O Primeiro Ministro, em comunicação ao país, ordenou um confinamento geral e sem exceção. Tudo para casa, comércio e indústria fechados por tempo indeterminado. O dinheiro público que o regime andou a esbanjar em salvamentos de bancos, em investimentos ruinosos junto do poder privado, em modernização máxima da segurança e em périplos políticos por todo o mundo fazia agora falta aos trabalhadores obrigados a ficar em casa e àqueles que já antes desta peste nada tinham. Os partidários do regime, que tinham instado o governo a desinvestir na saúde pública, pediam agora que algo se fizesse, mas era tarde demais. Os serviços estavam nas lonas. O trabalhador e a trabalhadora que tinham falado mal do desempregado e da desempregada estavam agora sem ocupação e sem dinheiro. Os pais berravam, os filhos berravam e ninguém tinha razão, nem comida. As pessoas podiam sair à rua para comprar mantimentos isolada e solitariamente, e a uma hora estipulada. Quem fosse apanhado na rua fora de horas ia diretamente para a prisão até ao dia em que fosse decretado que a peste já não existia, o que podia vir a ser anos de encarceramento sem julgamento. Muitas pessoas foram presas e assim levaram a doença para as cadeias. Quando já não havia dinheiro para as compras e quando já não havia sequer produtos para comprar, a Igreja, sempre com a sua caridade sobranceira, atuou em prol dos desprivilegiados, mas isso durou pouco tempo, porque os santinhos não estavam a fazer os tão desejados milagres que os padres diziam que iam acontecer. Veio a miséria, a fome e a doença em larga escala. Os ricos continuaram ricos. Inocêncio continuava a fumar o seu cigarro.

Aquela maldição terrível, que estava a tirar vidas aos milhões em todo o mundo, não chegou à cela de Inocêncio. Era o corredor da morte, ninguém recebia visitas e os guardas foram prontamente obrigados a coabitar com os prisioneiros, não podendo, portanto, ir a casa. Volta e meia lá se ouvia um guarda a chorar, porque tinha recebido a notícia de que a mãe, o pai, a mulher, um filho ou uma filha tinham morrido. Finalmente, para mal do mundo, tinha chegado o dia em que naqueles corredores não eram só os condenados a chorar.

As execuções continuavam. Havia dias em que até se executava mais do que o normal para limpar a prisão do vírus, mesmo que não houvesse relatos científicos de que algum prisioneiro estivesse infetado. Era uma chacina. A doença lá fora, a forca cá dentro. Inocêncio não esperava notícias de ninguém, porque estava sozinho no mundo, e fumava o seu último cigarro em silêncio total. «Guarda, é a vez do Inocêncio!» «Ele está a fumar o último cigarro...»

Dois anos depois, o vírus fora finalmente irradiado e o país estava uma desgraça. Após milhões de vidas perdidas, umas pela doença e outras pela infame pobreza, as pessoas voltaram a sair à rua e, as mais felizardas, regressaram aos empregos, aos poucos que havia. O regime saudava-se a si próprio por este regresso à normalidade e os melhores tempos da nação aí viriam. A Igreja estava afundada em casos de pedofilia superficialmente investigados, muitos dos ricos tinham levado a sua riqueza e as suas indústrias para outros países e o pouco dinheiro dito público que existia estava a ser canalizado para as forças armadas, porque uma ameaça de Leste dava ar de si.

A guerra rebentou. Nunca chegou a solo nacional, mas muitos jovens foram enviados para uma frente bélica longínqua, para lutarem não se sabe bem para quê e por quê. Os jornais noticiavam que um país enorme dominado por uma oligarquia corrupta tinha invadido a nação vizinha e que o Ocidente tinha de prestar auxílio sem demora. Os bilhetes clandestinos que passavam surdamente de mão em mão diziam que a culpa disto tudo não era só daquele enorme país desorientado, com manias de expansão ilegal, mas também era do Ocidente, que tinha acordado um gigante adormecido através da imposição de sanções económicas. Inocêncio, a fumar o seu cigarro, ia sabendo estas coisas através do Guarda, e este, por sua vez, ia sabendo por outros colegas, já que não arredava pé da porta daquela cela. Inocêncio não queria saber daquilo para nada, ouvia o outro homem falar e nem reagia, apenas inalava e exalava o fumo do seu último cigarro.

O regime, como sempre, era matreiro e chegou o dia em que foi promulgado o envio de prisioneiros para a frente de batalha. Os condenados à morte foram os primeiros a ser recrutados. Inocêncio estava na lista, mas não pôde ir. A sua sentença de morte, que seria efetivada na forca, já estava em curso, já tinha sido chamado ao cadafalso. Ainda estava na sua cela, mas, tendo sido feita a chamada, era como se já caminhasse pelo corredor rumo ao grande pavilhão das execuções. No entanto estava a cumprir o seu último desejo, que era fumar um cigarro. Inocêncio ali ficou. Nem foi para a guerra, nem foi para a forca.

O esforço de guerra para auxiliar aquele país invadido foi diminuindo ao longo dos meses e outra guerra eclodiu entretanto, desta vez no Médio Oriente. Um país não muito grande, mas altamente financiado pelo Ocidente, estava a dizimar um pequeno povo. Isto já acontecia há mais de meio século, mas ninguém queria saber, muito menos Inocêncio que estava a fumar um cigarro antes de ser enforcado.

Depois daquela guerra no Leste, que ainda acontece em focos específicos e isolados, e depois da doença, que alterou drasticamente um quotidiano que já não era muito famoso, o conceito de paz física e mental nunca mais foi o mesmo. Mesmo assim, Inocêncio, no seu silêncio circunspeto, escapou a tudo isto, não por entre os pingos da chuva como se costuma dizer, mas por entre fumo de um cigarro que nunca mais acabava.

O Guarda, que nunca tinha saído dali, envelhecia. Já devia ter ido para a reforma, mas enquanto Inocêncio não fosse executado, a sua tarefa de vigilante também não terminava. Quando vinham fazer a chamada para se concretizar a execução, o Guarda já nem dava à língua para avisar que o condenado estava a fumar, simplesmente encolhia os ombros e apontava. Inocêncio estava a cumprir o seu último desejo e assim tinha de ser, só depois o podiam levar. O regime podia mandar ladrões, assassinos e opositores para o outro mundo, o dos anjinhos, mas tinha compaixão. O último desejo era o último desejo. Os cinco minutos dados a Inocêncio para um monólogo interno ao sabor de tabaco tinham-se transformado em décadas.

Certa noite ouviu-se grande alvoroço na cadeia. O Guarda, já a ficar com uma corcunda e com rugas que lhe mudaram a face, levantou a cabeça para ouvir melhor. O regime tinha caído e não tinha sido com um golpe de estado limpo ou sangrento, tinha sido nas urnas. Sabe-se lá como, mas aconteceu. O novo governo moderado e progressista tomou posse rapidamente, medidas de apoio ao povo ainda fustigado por guerras e maleitas estavam já a ser postas em ação. Os condenados a prisão perpétua com mais de vinte e cinco anos de calabouço iam ser postos em liberdade e os condenados à morte iam receber uma amnistia, fosse qual fosse o crime. «Apaga o cigarro», pediu o Guarda, «não tarda e estás lá fora». Inocêncio não só não reagiu àquelas palavras como também não apagou o cigarro. O novo governo tinha sido sol de pouca dura. Um golpe de estado, desta vez mais ou menos sangrento, tinha ocorrido nas grandes cidades. Pela primeira vez em quarenta anos, o regime tinha perdido o poder em eleições e retomado o cadeirão do põe e do dispõe sem eleições. Há uma primeira vez para tudo. Acabar com os anos de cárcere de Inocêncio, seja pela forca ou pela liberdade, é que nada. Inocêncio, na sua paralisia emocional, é que tinha razão em não apagar o cigarro. Os condenados à morte iam ser executados com celeridade. O regime, novamente colocado no topo da mesa das decisões, tinha de pôr ordem na casa.

Naquela cadeia só restavam Inocêncio na sua cela e o Guarda à porta dela. O complexo tinha sido abandonado porque estava obsoleto. Os presos comuns tinham sido transferidos para novas instalações e os habitantes do corredor da morte foram executados, menos Inocêncio que fumava o seu último cigarro.

Dois ou três anos mais tarde, não se sabe bem ao certo, porque o que contava eram aqueles últimos cinco minutos concedidos que se tinham tornado em mais de quatro décadas, ouviram-se grandes rebentamentos fora dos muros da prisão. O Guarda, que já era muito surdo, ainda assim estremeceu. Farto daqueles anos de solidão ao pé de um condenado à morte que nunca mais acabava o último cigarro e que nem sequer era boa companhia para conversar porque realmente nem falava, decidiu destrancar a porta da cela e pôr-se a andar. «Vou é aquecer uma aguinha para a botija e enfiar-me na cama que está frio!»

Agora completamente sozinho, Inocêncio continuou a ouvir as explosões lá fora. Estavam cada vez mais perto, até o pó se soltava do chão e das paredes. Tudo estremecia, menos Inocêncio que fumava um cigarro. Com a porta da cela aberta, parece que o cigarro levou com uma corrente de ar mais forte e a ponta luminosa estava a chegar ao filtro, prestes a queimar os dedos deste veterano prisioneiro e fumador. Depois de olhar para o cigarro, Inocêncio apagou-o na parede e saiu.

Lá fora, a admirar com pouca admiração o ar e a paisagem da liberdade, Inocêncio viu ao longe uma coluna de homens a aproximar-se. Parecia um bando de lavradores, sujos e mal arranjados, com botas e calças rotas, casacos roçados e boinas empoeiradas. Só que em vez de enxadas, ancinhos e gadanhas, traziam espingardas e caçadeiras.

«Vai haver uma revolução, amigo! O regime vai cair!», gritou a Inocêncio um rapazinho que não teria mais de dezoito anos. Inocêncio ouviu, mas nem uma palavra expeliu, só levantou uma mão timidamente, como que a dizer olá. «Camarada, toma lá um bocado de broa e um cigarrinho.»

Inocêncio guardou o pedaço de broa no bolso, acendeu o cigarro com um fósforo dado pelo rapaz e ali ficou a fumar à espera da Revolução.


(escrito em 15/01/2024, revisto em 19/05/2025)

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