Ou dissemos e rebentámo-nos em pedaços?
Esta é a carta que nunca vais ler, porque nunca ta vou enviar, mas vai ser partilhada por aí e mesmo assim não a vais ler. E como não a vais ler, também não saberás que é para ti.
A ingenuidade das primeiras tímidas palavras e o ocultar dos primeiros olhares cruzados, sempre a pensarmos que o outro não percebia, criaram uma fatuidade aparentemente ilógica – isto não estava a acontecer, não podia acontecer e não ia acontecer.
Cheguei a aquecer por dentro e depois a gelar também. Acabaram-se os tempos dos impulsos, das palavras desmedidas, das emoções repentinas e sem filtro. Ganha razão, tem de ganhar a razão. Mas nem sempre foi assim. Voltei a aquecer. O gelo regressou depois. E aqueci novamente. E o meu âmago é uma crise climática constante – todo alterado e adolescente, que, a muito custo, tende a assentar e a ser um adulto racional.
A nossa sorte é que nunca houve promessas, sempre com medo dos estilhaços que nos cortariam os pés se alguns compromissos, inicialmente cheios de empenho, fossem quebrados. Rimos muito, dissemos parvoíces, apanhámos bebedeiras e até tentámos debater filosofia – o que é o estoicismo, o pessimismo e o que somos e andamos a fazer afinal connosco e com os outros nesta curta, preciosa e tão feliz quanto sofredora passagem por este planeta. Somos assim tão únicos no infinito do Universo? Não haverá mais vida complexa na vastidão de milhões e milhões de galáxias? E será que somos assim tão únicos, por cá, que não há mais ninguém por quem nos apaixonarmos?
Vou falar, não vou falar. Vou convidar, não vou convidar. Vou admitir, não vou admitir. O tempo é a resposta: para apagar ou para acicatar ainda mais irresponsavelmente. Quis limpar essa lousa, em que tinha escrito pensamentos, sentimentos e resoluções, e consegui – não durante muito tempo. Ri contigo, ao teu lado ou à distância, enquanto me doía não dizer o que queria – por medo, por respeito, por querer defender a inocência dos risos e das piadas, até dos olhares.
Batemos numa parede quando admitimos, e essa parede ruiu comigo, por uma ribanceira. Não ponderei as minhas hipóteses, aceitei a queda – e lá fui eu por ali abaixo, ao rebolão. E os ossos não seriam o maior problema. A alma é que se partiu toda. Mas também não vamos ser melodramáticos ao ponto de encenarmos uma peça de teatro regada por lágrimas falsas e gritos desesperados que não são mais do que profícua atuação. Isto era só paixão – mas porque não pensar em amor? Não agora, mas depois, talvez um dia destes, pé ante pé, com os mesmos risos, parvoíces, debates filosóficos sobre a música, os filmes, os genocídios e a própria vida, mas com beijos à fugida, apalpões firmes e noites passadas na mesma cama. E se dá merda? Nunca saberemos. Nem estás a ler isto sequer, portanto não importa.
Admitimos, primeiro respirei de alívio e depois, quando acordei, dei por mim espatifado contra um poste de eletricidade que aguenta, intacto, o maior dos camiões – não vai dar, sabemos que é melhor nem irmos por aí. Admitimos, mordemos a língua e vamos sufocar com o nosso próprio sangue. Não é o que te desejo, calma. Mas é o que nos aconteceu. Nem há choradeira, e esse sangue também é só uma metáfora – afinal isto é só uma carta de amor que nunca vais ler, não é um conto de terror sanguinolento.
Se calhar íamos prometer rosas e ficaríamos, pouco depois, com os espinhos cravados nas pontas dos dedos, nas palmas das mãos, nos pescoços, nos lábios, até nos olhos caso nem nos pudéssemos ver à frente. Às tantas íamos achar que conseguiríamos viajar por vários sistemas solares, em movimento de translação à volta de diversos sóis que éramos realmente nós próprios, mas se calhar nunca iríamos sair deste plano terrestre e o primeiro passo dado seria para pisar uma mina e outra e outra, até não haver mais carne e espírito para se ver a despedaçar no ar e a cair desfeito, aos bocados, no chão.
Houve dias em que achei que encaixávamos como puzzles – senti esse fascínio utópico. Mas isso já não é estar-se apaixonado? Não quero. Mas houve desses dias – e alegrei-me, renasci momentaneamente, imaginei cenários, obtive coragem. Só que aterrei, enfim, com o peso da razão que é tão forte como a gravidade. Lá se foram os sistemas solares, as galáxias, os beijos e o arrebatamento, mas ao mesmo tempo também desapareceram as minas e as explosões que nos iam destruir a simplicidade de podermos continuar a ver-nos e a falarmos sem rancor – talvez com alguma tristeza ou passageira relutância, mas nunca com aversão.
Os dias passam e a sagacidade da paixão murcha. E está tudo bem. Tem de estar tudo bem. E não quero voltar a sentir frio na barriga, nem quero ficar com o teu cheiro na minha camisola quando me dás um abraço acompanhado de um sorriso lindo.
E o pior de tudo é que mesmo assim, decididos a não tentarmos nada em nome da paixão, da tesão ou mesmo do amor (porque não?), estilhacei-me como vidro frágil. Acho que vou sangrar mais do que tu. Silêncio.
(31/12/2024)
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