Corria o ano de 1856, e, reinando D. Pedro V, corria também pelo país a cólera-morbus, que atacava, sem parcialidade, novos, adultos e velhos com cãibras, diarreia e vómitos fortes. Desenvolvendo-se em Lisboa, a região norte e centro virada para o mar também teve a sua quota-parte de pestilência, de Viana do Castelo à Figueira da Foz.
Ílhavo, terra de homens que pescam no mar o sustento ou a morte e de mulheres que amanham em terra o peixe ou a sepultura no peito dos que lá ficam entre ondas e redes, não escapou ao terrível flagelo que dizimou centenas de criaturas. Sem escolher especificamente entre jovens e velhos, ricos e pobres, pescadores e agricultores, a mortandade espalhou-se com um terror e um desânimo profundo que ia, surpreendentemente, abalando as almas fortes dos ílhavos.
À doença, já por si calamitosa, juntou-se a fome que redobrou a aflição e a angústia, causando, nas gentes ribeirinhas, coletivos e abafados suspiros de desalentada esperança. Os barcos-do-mar imobilizaram-se, porque os braços que remavam e puxavam as redes quase não se viam a trabalhar ou a acenar no regresso à praia. Esses braços, fortes e morenos, salpicados pelo salitre, estavam agora pendurados no rebordo de padiolas ou estirados em denegridos caixões. Havia ainda os que, já desolados pelos sintomas, com medo de serem acusados de cobardia, se faziam ao mar na mesma, para, no pico da fraqueza, simplesmente baldearem da embarcação. «Ó Zé, agarra a corda, home!» Muitas vezes, o mar nem estava assustadoramente bravo e salvar-se-ia, com relativa facilidade nessas condições, um pescador forte e obstinado como o Zé, ou outros. O que os companheiros não sabiam é que o Zé – e outros, para não serem enxovalhados pelos veteranos ou ameaçados pelos arrais mais atrozes –, foi ao mar sob agudas fisgadas que lhe perfuravam a barriga sem ferida e sangue aparentes. Caídos às águas, deixavam-se afundar, sem luta. A boina a boiar era o que, por mais uns minutos, sobrava do desafortunado. E depois, só mar. Remava-se de volta ao areal em silêncio sepulcral, ouvindo-se apenas a marejada e o ranger dos remos. Os que o mar não levava, lutavam em terra – e cediam, por fim, estrebuchando até à morte.
Aquele junho, que costumava antever o verão quente de julho e as romarias de todas as Nossas Senhoras de agosto e setembro, era um mês de ceifa humana. As gosmas dos moribundos subiam-lhes pelas gargantas até às bocas em vómitos esverdeados com um cheiro nauseabundo. Quem não sufocava com a lama viscosa vinda das entranhas, sobrevivia mais um bocado com o peito a arder de tanto tossir e escarrar com a ajuda da heroica e magnânima Leocádia Ferraz, que ia auxiliando os atacados com sucessivas abluções de água a ferver.
Na casa que viria a ser do senhor Cartaxo, na Rua Direita, improvisou-se um pequeno e humilde hospital para onde traziam os desgraçados sem família. Muita dor se mitigou ali, muitos doentes morreram a ouvir palavras de esperança e sentido carinho. «O seu filho está a vir do Brasil, tenha calma.» «Claro que vai voltar a ver o mar, agora descanse um pouco.» «Nosso Senhor Jesus dos Navegantes não a vai abandonar.» Havia quem já nem ouvisse a frase completa.
Para os lados da Costa Nova, a noite ia alta, assim como os ais e os roncos de desespero que ecoavam pelas sombrias vielas dos palheiros. Quando não havia berros e choros, de doença ou de perda, ouviam-se vozes mais serenas e passos apressados de pescadores valentes que carregavam para as bateiras os corpos mortos dos flagelados, a fim de os transportar para a outra margem, onde ficam as Gafanhas e o cemitério de Ílhavo. Já indiferentes e automatizados pela tarefa, os homens firmavam os seus pés no ventre dos cadáveres empilhados para a remada ser mais forte. Tamanha era a descarga de força que, várias vezes, os corpos – uns ainda moles, outros mais hirtos – rebolavam para cima dos vivos a remar ou borda fora. Os que estavam mais no fundo da pilha assustavam quando, do nada, esgazeavam os olhos mortiços e nublados.
Com os pés na areia, seja a da Costa Nova ou das Gafanhas, o padre Fernando, tido pela comunidade como um santo levita, há muitos dias que não tirava a sotaina e o sobrepeliz, pois andava de povoação em povoação, fosse dia ou fosse noite, sem descanso, a abeirar-se dos doentes, a confessar este e a consolar aquela.
A 30 de junho, pela meia noite, viu-se a si mesmo no sul da Costa Nova, num miserável palheiro, a afagar com orações um pescador às portas da morte. A hora era já adiantada quando o antigo marítimo, com voz fraca, humildemente balbuciou: «Adeus, senhor padre Fernando...» E morreu.
De pé, no topo das dunas, o padre Fernando era uma estaca. A batina dançava, flutuava, livremente à sua volta por causa da aragem branda que vinha do sul, perfumada de maresia. Virado para o mar – que não não via, mas que sentia através da audição e pelas narinas –, tinha os olhos rasos de água e o coração oprimido. Com tristeza, mas ainda com mais fé, elevava a Deus os seus pensamentos, implorando a misericórdia da Senhora da Saúde, que, como cria o padre Fernando, nos céus velava a sua Costa Nova. E chorava a bom chorar, sozinho e sem timidez.
Subitamente, vindo do fundo, um barulho brusco cortou o silêncio – só ouvir as ondas também é estar em silêncio – e sacudiu a postura estoica do sacerdote. Numa correria trágica e rápida, esquecendo as lágrimas, salgadas como o mar que evaporavam da face, desceu a ladeira e travou à beira da luz duma candeia de azeite. Dois homens rodeavam um pestilento. Um amarelo de bílis escorria-lhe pelos cantos da boca ressequida pela febre. Suava muito. Num último ato de bondade, o padre Fernando sentou-se no chão e colocou a parte superior do corpo do doente no seu regaço, como se de um bebé se tratasse. Depois de ter respirado muito fundo e estremecido, a cabeça do enfermo tombou. «Levem-no, que está morto», disse o padre.
Os outros dois homens pegaram no defunto e levaram-no para a bateira mais próxima. Remaram para o outro lado da margem e, na Gafanha, já na zona da Mota, transladaram o morto para uma padiola. Um à frente e outro atrás, carregaram o corpo pelo antigo caminho de areia em direção a Ílhavo.
Os dois vivos, atrevidos pescadores labregos que pouco conheciam da sua própria terra, caminhavam silenciosos e abatidos em contraste com as extraordinárias façanhas que operavam no mar e que tantas vezes encorajou a ralé. Em cima dos possantes ombros, a maca rudimentar tremia e fez com que o morto se revirasse, descaindo-lhe uma das pernas. Para aliviar o fardo, pararam junto a uma mouteira de tramagueiras. Ambos fizeram um cigarro e, ao acendê-los, iluminaram sem intenção o rosto do morto.
«Parece que o homem abriu os olhos», disse um, ao que o outro respondeu: «Qual abriu nem meio abriu! Tu não ouviste o senhor padre dizer “levem-no, que está morto”? Antão está. Pega que se faz tarde, são duas horas.» «Põe-lhe a perna para cima», ordenou o primeiro.
Ergueram a padiola e continuaram a caminhar, atirando para o ar prolongadas fumaças dos cigarros que ainda duravam. Pesadas nuvens, que pareciam feitas dum negro veludo, encobriam um raquítico luar que, quando aparecia, esbatia a figura do morto na areia branca das dunas. Voavam aves agoirentas, chegavam rumores do mar, como alguém a gemer, mas nem uma casa ou uma luz se via, muito menos gente. Caminharam mais, a modos que sem rumo, pisando o solo, pé ante pé, com temor, através de um carreiro duvidoso até serem primeiro alarmados e depois paralisados pelo sino que dava meia hora para as três da madrugada. Estavam, sem saber, junto à ponte Juncal. Do outro lado, Ílhavo.
Passaram a ponte e seguiram pelo estreito e delgado caminho da Barquinha, descendo depois o pequeno declive do Outeiro. Numa encruzilhada, viram-se novamente indecisos, sem saber por onde ir. «Ó que diacho! Qual será o caminho pró cemitério?»
Erguendo a cabeça na escuridão e apontando com a mão direita, o morto respondeu: «Quando eu era vivo ia por aqui, agora que sou morto, levem-me por onde quiserem!» E levaram, sem ais nem uis, seguindo a indicação do morto com vida…
Encontrado o cemitério, aí se abriam profundas covas, como é costume em tempo de epidemia. Numa espécie de vala comum, sepultavam-se três, quatro ou mais cadáveres. Trabalhava-se todo o dia e toda a noite.
O homem da padiola que os dois pescadores da Costa Nova julgavam morto, mesmo depois de ter falado, foi estendido num robusto caixão de pinho e este lançado para uma sepultura onde já se encontravam outros dois. E nem uma lágrima, nem sequer uma reza. Só trabalho.
O coveiro, um tisnado e forte adulto rapagão, a quem a cólera parece não ter atingido, atirou-se à enxada e começou a lançar pazadas de terra vermelha, em contraste com a areia clara das praias ali tão perto, para cima dos caixões. A manhã rompia quando o coveiro alisava a campa improvisada. Retirou-se. Exausto, atirou-se para cima duma velha lousa, que certamente iria ser usada para tapar uma sepultura mais requintada, e adormeceu.
Tinham passado quinze dias, e a cólera tendia a desaparecer. O povo ilhavense, agora mais animado, juntava-se no adro da igreja a dizer preces e louvores em direção ao céu, agradecendo as melhorias ou a pedir que isto não voltasse a acontecer. Dali seguiam para o cemitério, para se chorar a perda dos entes queridos. Muitas pessoas não encontravam as sepulturas dos que muito amaram devido à quantidade de inumações desorganizadas que tinham acontecido nos últimos tempos, o que redobrava de amargura a sua profunda dor.
Entretanto, o coveiro-vígia, no cemitério em permanência, vinha notando há dias que, da cova onde se enterrou o da padiola, surdia por vezes um ruído vago e estranho, como um som de assobio fraco, à semelhança do sibilar do vento em ciprestes. «Que diabo seria aquilo?», cismava, franzindo a testa.
Certa manhã, a sua curiosidade já demasiado espicaçada, levou-o ao local em concreto. Deitou-se de bruços sobre o coval e colou o ouvido à terra. Agora, depois do cisma, não lhe restavam dúvidas: alguém falava baixinho. E ouvia soquear em tábua.
«Quem quer que seja, está aos murros no caixão», pensou o coveiro-vígia. E, de repente, com vigor, o morto gritou: «Eh gente! Eh de cima!» O coveiro deu um salto, tomou ar com o sobressalto, os cabelos ficaram eriçados como a rama de vassoura e, atirando o chapéu com violência, tornou a deitar-se, encostando o ouvido ao chão e berrando assim:«Eh de baixo! Quem chama é gente, ó quê?!»
«Eh! Jaquim Salimo, sou eu, homem! Então eu fico aqui eternamente?! Olha que já se me acabou hoje a broa de pão que trazia no bolso!», respondeu o morto, que afinal estava vivo.
Sem mais palavras, o de cima, vivaço e com pressa, pegou na enxada e, com a fúria de um leão ferido, começou a cavar até chegar à tábua. Nervosamente, com o olho da enxada deu tamanha pancada no caixão que as tábuas superiores saltaram em bocados.
Vagarosamente, pachorrentamente, o suposto morto esfregou os olhos, saltou dum pulo para cima e, agarrando-se ao Salimo, deu-lhe tal esticão às costelas que este, aflito e sem ar, resmungou: «Eh ti Salvador, parece que nem esteve quinze dias sem comer! Anda daí beber um quarteirão de aguardente, homem!»
E lá foram os dois, de braço dado, para a loja da ti Calçoa.
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Nota
O texto original (que não este – já lá vamos), assinado simplesmente por Jorge Manuel, foi publicado na edição de 14 de maio de 1922 do jornal “O Ilhavense”, sendo escrito em post-scriptum que “correu fama este facto” do morto-vivo e “houve nesse tempo quem risse e quem chorasse”. Sabe-se também que no ano da publicação, 66 anos depois da suposta ressurreição, ainda existia a casa onde habitou o ti Salvador, precisamente na Viela do Salvador, em Ílhavo. Após breve pesquisa toponímica, podemos dizer quase com certeza que o nome da viela, localizada perpendicularmente à Rua Serpa Pinto, nada tem a ver com o ti Salvador, existindo pelo menos desde o Séc. XVIII. Sabe-se ainda que a casa do morto-vivo ficava em frente à antiga habitação das tias Angélicas.
Terra de muitas histórias sobre o mar – umas escritas, outras transmitidas oralmente –, esta do morto-vivo contrasta com essa corrente, sendo uma das poucas lendas, ou estórias para ser mais correto, relacionadas ao terror e que está publicada de qualquer forma, neste caso num jornal.
Amante deste tipo de historietas, usando muito disto como inspiração para os meus livros anteriormente editados, decidi pegar no texto original e, sem mudar o rumo do enredo, dar-lhe mais corpo num formato mais livre que não esteja encurralado no espaço que uma página de jornal permite. Se me julgo no direito de o fazer, esse é outro assunto que penso não arreliar ninguém, muito menos os meus conterrâneos ilhavenses, que são, ainda assim e muitas vezes, propensos a arreliações imaturas.
No fundo, este é um exercício de adaptação que há muito desejava fazer. Tomei a liberdade de adicionar alguns momentos de ação ou de paisagem emocional, assim como também pretendi utilizar expressões e estruturas frásicas presentes no texto original. Pensei até em aumentar o final, deixando no ar, por iniciativa própria, que hoje, em 2024 e nos anos vindouros, ainda se ouve o ti Salvador a andar pela viela, a rir-se da sua ressurreição e talvez a enxotar a morte, a gozar com ela. O que é certo é que, apesar de alguma piada que isso poderia trazer, não é o que se conta por Ílhavo; portanto preferi ser mais tradicional em relação ao escrito de 1922 e deixar como está, com um final infantil e patético, não no sentido da estupidez mas no da inocência e sem maldade – afinal, alguém morreu, ressuscitou ao fim de quinze dias e, sem perguntas, segue-se para a loja da ti Calçoa emborcar uma aguardente.
Por fim, acho também fascinante como o relato começa pesaroso e termina comicamente, como se isto fosse uma alegoria aos tempos conturbados da cólera que atacou no Séc. XIX, como se esta lenda, ou estória, fosse naquela altura o #VaiFicarTudoBem dos nossos tempos.
(19/09/2024)
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