São nove da manhã de segunda-feira e estou a abrir a porta do meu emprego. Trabalho numa revista mensal de utilidades para a casa, desde como se pregar um prego bem pregado à melhor receita de bacalhau, desde como melhor se envernizar uma porta de madeira ao melhor arranjo de flores. Dá para homens e mulheres, e sobretudo tem rendido muito às funerárias. É que os nossos assinantes são maioritariamente de idade avançada, o que não é bom para nós, porque vamos ficar sem subscritores, mas é bom para as funerárias. É tão bom que até temos duas páginas de publicidade com orçamentos para enterros, caixões e toda uma parafernália de coisas que servem mais para alimentar as vistas de quem cá fica do que para o corpo, brevemente em pó, de quem vai. Bem vistas as coisas, também rende para nós, porque nos é comprada publicidade. Ficamos todos a ganhar. Se bem que mortos nunca acabarão, e esta revista tem os dias contados. Cá nos aguentamos. Do lado esquerdo existe uma mercearia que está sempre para fechar mas fica mais um mês e do lado direito há um pequeno restaurante que está sempre às moscas. A única animação vinda do restaurante é ouvir o dono ao telemóvel a discutir com a irmã. Ao que parece, a tipa é interesseira e o irmão, que é mais velho, não consegue que ela atine. «Quando isto dava no verão, estavas sempre aqui a mamar do irmão, agora que não dá, passas meses sem pôr aqui os pés!», berra ele para toda a rua ouvir o espetáculo.
Nessa manhã, poucos minutos depois, tinha eu acabado de ligar o computador, entra um homem todo irritado. Manda-me um envelope e uma folha para cima da secretária e grita: «Isto é uma indecência! A mandarem-me uma carta para pagar?» O que o senhor, que eu sou educado, não quis saber é que já não pagava a assinatura da revista há dois anos. No ficheiro do assinante li a seguinte nota: paga com um ano de atraso. Já ia em dois. «Quero pagar o que devo e acabar com isto», gritou novamente. Amigo, é segunda-feira, tenha calma consigo. Não disse, mas pensei. E continuou com a sua irritação: «Já vim cá seis vezes e está sempre fechado! Até já trouxe pessoas para verem que está fechado! Não tenho a vossa vida!» Perguntei a que horas por ali passava. «Às seis e meia», respondeu. Escusado será dizer que fecho a porta às seis. Pagou, foi embora todo chateadinho, apaguei a ficha de assinante e o dia continuou.
Aí pelas dez e pico costuma passar o Alex. Bem dito, bem feito! Eu a fumar o segundo cigarro da manhã, lá vem ele rua abaixo com os seus cabelos grisalhos pelo ombro, uma barbita no queixo, magro de pernas e braços mas com bruta barriga. Anda sempre equipado a rigor. Em muitas ocasiões até traz o casaco de uma equipa, a camisola de outra e os calções ainda de outra. Já o vi com Beira-Mar, Chaves e Famalicão na mesma indumentária. Sempre alegre, exalta-se já perto de mim: «Eh ponta-de-lança! Agora estás na Académica?» Visto-me de preto, por isso, para o Alex, sou jogador do clube de Coimbra. Em vésperas de jogos grandes, por exemplo um Benfica – Sporting ou um Benfica – Porto, pergunta-me se já estou em estágio, porque sabe que sou adepto dos encarnados. Não era dia de jogo grande, portanto eu era só jogador da Académica. «Roupinha nova... Casaquinho novo, sapatilhas novas...», diz-me enquanto toca no meu casaco. A conversa é sempre a mesma. Há dias que respondo que sim, que é tudo novo, noutros dias não estou com paciência e digo que as sapatilhas têm mais de um ano. «Arranja aí uma palhinha», pede-me a apontar para o meu cigarro. «Eh Alex! Sempre a cravar tabaco», atiro. «Eh pá, estou sem tabaco, vou comprar quando for registar o totoloto. À tarde já te dou!» E é verdade, se não for naquela tarde, ao outro dia devolve-me todos os cigarros que me pediu na última semana. O Alex, já perto dos cinquenta anos, não trabalha, mas é muito bom moço e não toca em álcool. «Até logo, músico!» Sim, também costuma chamar músico a toda a gente. Mal tenho tempo para devolver a simpatia, porque já se está a meter com outra qualquer pessoa que passe na rua naquele preciso momento. «Eh boca-aberta, estás bom?» E lá vai ele comprar o segundo maço do dia e ainda é de manhã, registar o totoloto e tomar mais um cafezinho.
Recebo uns pagamentos de gente mais serena do que o primeiro freguês do dia, respondo a uns e-mails, atendo uns telefonemas e entretanto já chegou o meu colega da redação. Nisto, ouço uma voz áspera, mesmo a arranhar a goela: «Senhor, senhor! Arranje-me vinte cêntimos, por favor...» É a Sandrita. Toda acabada da droga, coitada. Digo que não tenho dinheiro e ela vai à sua vida sem mais uma palavra. Não sei a idade da Sandrita, só sei que para agarrada dura que se farta. É baixinha, não tem dentes e o tom moreno da pele é acastanhado, o que me faz sempre questionar se é a verdadeira cor ou se está imunda. A pé ou de bicicleta, anda sempre na luta por mais uma dose. Se a vejo a andar a pé, vai sempre aos saltinhos e a gingar. Já vai com a estrica! Quando a vejo a pedalar até fico admirado com a força que lhe dá, porque vai sempre em grande gáspea, como que com ânsias de cortar a meta da Volta a França. Por alguma razão se chama cavalo àquilo que ela injeta...
A manhã está quase feita, a hora de almoço aproxima-se. Mais uns e-mails trocados, umas piadas sobre qualquer coisa sem importância com o meu colega e está na hora do tacho.
Por volta das duas da tarde regresso. Sento-me ao computador que deixei ligado e nem tenho tempo para abrir o e-mail, porque aparece o Rick a perguntar se está ali mais alguém comigo. «Preciso de dezassete euros... Não está por aí alguém que me empreste?», questiona. Dezassete euros, que específico! Estou sozinho. E com algum medo, receio, desconforto, o que lhe quiserem chamar. O Rick é uma personagem obscura. Alto, cabelo curto e cinzento, olhos muito claros, veste decentemente e a roupa está sempre lavada, não trabalha, bebe muito, tem ar de mau vinho e já esteve preso. Não se sabe bem, ou pelo menos eu não sei, por que é que esteve preso, nem quanto tempo esteve dentro. Há quem diga que ajudou a matar um homem à pancada, com um ferro e um capacete de motorizada, daqueles a que chamamos penico. São bem rijos! Anda pela cidade o dia inteiro, senta-se aqui e acolá, e às vezes apanho-o em ruas que são normais para os meus caminhos mas pouco para os dele. Desconfio sempre que anda à coca de uma janela aberta ou de uma porta mal fechada para fanar qualquer coisa. Portanto, o meu desconforto na sua presença é bastante justificado. No meio disto tudo teve o discernimento de não pedir o dinheiro emprestado a mim, porque uma vez pediu-me quinze euros para ir ao dentista e eu dei-lhe dez. Feito burro, e com medo, claro está, porque o seu equilíbrio e olhar já não eram muito apresentáveis, saquei da carteira e dei-lhe logo a nota. Sabia lá se levava um pero ou uma naifada inesperada. «Até te deixo aqui o meu cartão de cidadão, já te venho devolver o guito», disse-me. «Caga nisso, Rick, toma lá os dez paus», digo a tentar despachá-lo com uma simpatia matreira, como quem está de bem com aquilo mas interiormente não se está nada bem. Ele ia ficar sem o cartão de cidadão porque nunca mais o iria buscar e eu ia ficar sem os dez euros de qualquer maneira porque, medricas, tirei logo a carteira do bolso de trás das calças. Ao fim dessa tarde vi-o ao longe todo torto, com grande tosga. O dentista dele foram umas taças de tinto carrascão. Mas voltando a esta segunda-feira à tarde, eu disse que estava sozinho e o Rick também não insistiu mais. «Eu sei que ainda te devo dez euros, eu depois passo cá a dar-tos», disse a ir embora. Claro que nunca mais vou ver a nota, mas tudo bem, que tenha tido bom proveito na sua azáfama mandriona. Só não queria ser roubado, que se pusesse é a andar.
Mais tarde, vou fumar um cigarro à rua e passa o Flamengo. Chamamos-lhe Flamengo porque é adepto fervoroso desse clube brasileiro e anda sempre vestido de preto e vermelho, como a equipa. Às vezes anda todo de azul, da cabeça aos pés, e achamos estranho. Faça chuva ou faça sol, raro o vemos com um casaco vestido, anda sempre de manga curta ou com uma camisa vermelha, pois claro está, por cima de uma t-shirt preta, pois claro que sim. Uma vez vi-o de calções e mangas cavas numa manhã de chuva. Nesse dia estava vestido de azul. Caminha sempre em grande bolina com envelopes na mão ou a comunicar pelo telemóvel. Se o Alex ali estivesse, até imagino que dizia algo como: «Olha, lá vai o músico empresário!»
Regresso às minhas tarefas, o tempo passa e é hora do lanche. Estou a sacar umas bolachinhas quando me entra por ali o Canjas, sempre vestido de negro, asseado e muito bem cheiroso. Vamos por partes. O Canjas teve uma banda de death metal há quase trinta anos. Eram os Damnation e eram muito bons, mas separaram-se cedo. Um emigrou, outro virou para as rave-parties, o terceiro não faço ideia e o Canjas ficou por cá. Deram-lhe essa alcunha porque era muito bom guitarrista e qualquer coisa que lhe pedissem para tocar, ele dizia que era canja. Também lhe chamamos Marchante, porque ele marcha, e não é por ser tropa. Há uns anos caiu de uma varanda e lixou as pernas. Para além da marcha, que faz ouvir bem as botas a bater na calçada, também fala muito devagar. É uma mistura de medicamentos e álcool. «Eh meetaleiiiiro! Saaabes queeem euuuu souuu?», pergunta-me o Canjas. Sei pois, claro que sei. «És o guitarrista dos Damnation», digo-lhe a sorrir. Cumprimenta-me com um passou-bem e pede-me dois euritos com uma mão enquanto tem a outra cheia de moedas. «Não tenho dinheiro. Já ninguém anda com dinheiro, agora é tudo com aplicações», despisto-lhe o pedido. O Canjas deixa cair os ombros com o desalento. Pergunta-me que bandas ando a ouvir e vai à vida dele, vai pedir dinheiro de forma muito lenta à primeira pessoa que se atravessar no seu caminho marchante. «Gooood be wiiith youuuu! The worlllld neeeds peeeaace!», despede-se a fazer o sinal da paz, com os dedos indicador e médio esticados. Gosto do Canjas, não porque dê para conversar, porque realmente não dá e às vezes dou por mim a pensar se também tenho de falar devagarinho ou se posso falar à velocidade normal, mas porque se calhar tenho pena dele. Era mesmo um guitarrista do caraças! Às vezes dou com ele sentado no largo da igreja, que fica perto da sede da nossa revista. A minha mãe disse-me certo dia que ele vai lá para o prior lhe benzer os garrafões de água. Só depois de benzidos é que os bebe. Há coisas que não se perguntam o porquê de serem assim. Cada um com a sua. E num Natal deu-me chocolates. Mesmo depois de eu não lhe dar as moedas que pediu, foi ao bolso do casacão grosso e ofereceu-me chocolates. «Booooom Nataaaaal!» Gosto do Canjas e tenho mesmo pena dele!
São quase cinco da tarde, mais uma hora e vou para casa. Mas é segunda-feira, portanto é dia de reunião semanal com o patrão. Só chego a casa lá para as sete. Durante duas horas fazem-se as perguntas de sempre, dão-se as invariáveis mesmas respostas, fala-se da cidade e do estado da nação. Gosto desta última parte, só não gosto das mesmas perguntas, porque parece que rebentou um surto de amnésia de uma semana para a outra e isso provoca-me uma ansiedade aguda.
Faltam dez minutos para as sete da tarde quando estou a entrar em minha casa. Passou o primeiro dia da semana, faltam mais quatro. Gente vai morrer e vou ter de cancelar subscrições da revista, o que é péssimo para nós porque nem temos tido novos assinantes, mas vamos ao menos esperar que os atrasados venham pagar. «Olhe, mais um ano. Não sei se lá chego, já são 84... Se não chegar, ao menos está pago!» Sorrio e respondo quase sempre: «Há-de estar cá, pois! Respira juventude!» Não raramente, passado uns meses, recebo um telefonema: «Bom dia. É para cancelar uma assinatura. O meu tio morreu na semana passada.» Faço os acertos e cobro as revistas que foram enviadas até àquele mês do ano.
Mas pronto, já estou em casa. Hora do banho, depois jantar e pôr um disco a rodar ou ler ou ver um filme ou escrever.
Apesar de as segunda-feiras poderem ser um martírio, algumas deixam ver a luzinha ao fundo do túnel porque na quinta-feira vou tocar umas músicas com alguém ou no fim de semana há programa noturno com copos e concertos, ou só copos. Agora não é o caso, porque não tenho planos. É uma semana normalíssima. Não fico deprimido, mas fico mais pensativo. E é nestas noites que adormeço a pensar naquela gente que passa por mim quase todos os dias na rua onde é a nossa revista.
O Alex já deve ir no terceiro maço de tabaco e no sétimo café do dia. Deve estar a ver programas de debate desportivo e a participar, falando para o ecrã da televisão desde o sofá, como se estivesse entre os arruaceiros de fatinho que falam de futebol e, na verdade, não percebem patavina daquilo. Querem é berraria e polémica. Provavelmente vai dormir umas quatro horitas e às seis e meia da matina já está na pastelaria a beber um café e a comprar tabaco. Isto é o que ele me diz, eu não sei se é mesmo assim porque a essa hora ainda estou muito bem a dormir. Mas acredito que seja verdade. Gosto muito do Alex, e ele de mim. Conhece-me desde puto e eu conheço-o desde que sou puto. Sei que cumpriu serviço militar e teve uns trabalhitos pontuais, se bem que nunca o vi trabalhar, mas anda sempre em grandes correrias, cheio de recados para fazer ou a queixar-se de maleitas físicas, geralmente cólicas. «Eh músico, qual é a pressa?», pergunto-lhe. Nos dias em que não tenho paciência para ele, por estar aborrecido, stressado ou atarefado, depois até me sinto mal, porque o Alex é verdadeiramente uma alegria que afasta energias negativas.
A Sandrita, coitada, deve estar a chutá-la ou a ressacar. Será que esta gente dorme? Eu, que não sou drogado, imagino que nem dormem. Só dormem depois de a ter a correr na veia, e não deve ser por muito tempo. Acredito que a vida de drogado deve ser mais agitada do que a de muitos respeitados empreendedores. E digo mais: os agarrados também são empreendedores, porque têm de arranjar inéditas maneiras para encontrar a próxima dose de cavalo. Por vezes ando duas ou três semanas sem a ver a gingar rua fora e penso que se calhar acabou por morrer. Mas depois, como um ressuscitado Cristo feminino e drogado, lá aparece a Sandrita, baixinha, sem dentes e aos saltinhos com um charro nos lábios finos ou a debulhar umas batatas fritas.
Sobre o Canjas não sei bem. Como tenho uma triste empatia por ele, dou por mim a pensar que está em casa a sentir-se sozinho, provavelmente bêbado. E talvez essa solidão não perdure muito porque vai adormecer rápido por, isso mesmo, estar bêbado. Mas há alcoólicos que também não dormem muito, portanto não sei até que ponto o Canjas dorme. Mas sei que toma banho porque está sempre a cheirar bem. Em momentos sóbrios talvez chore um pouco porque as pernas já não são o que eram, e nem quero sequer imaginar que dá murros nele próprio com os nervos. Noutros momentos penso que tenta pegar na guitarra, mas os medicamentos já lhe tiraram a destreza. E talvez também chore por isso. Será que ainda ouve Type O Negative e Deep Purple ou até isso já apagou da sua vida? Faço este retrato fatídico e pesaroso, mas se calhar o Canjas até está a curtir a dele e eu é que estou aqui todo entristecido. É isso, deve ser isso, vamos pensar que é isso.
Está na hora de dormir. Amanhã é terça-feira. Mais um dia de trabalho. Mais um dia a tentar salvar a nossa revista de utilidades. E espero que seja mais um dia a ver esta gente toda!
(30/01/2024)
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