quarta-feira, 28 de maio de 2025

Não sei se consigo voltar para casa...

uma chamada telefónica durante a madrugada


Quatro e doze da madrugada. Toca o telemóvel. Ela acorda confusa, a pensar que já seria de manhã, que é o despertador. Mas aquele som não é o toque do despertador, é mesmo uma chamada. Enquanto pega no telemóvel, que está em cima da mesinha de cabeceira, estica o outro braço para o lado oposto e percebe que está sozinha na cama. No ecrã do telemóvel, que lhe ilumina a face estremunhada, vê que quem lhe liga é o namorado. Atende, e fala com voz de muito sono: «Estou...» Os primeiros sons que lhe chegam ao ouvido são ruidosos, como um formigueiro da televisão. «Estou...?», repete. «Não sei se...», diz-lhe do outro lado, com a frase a ser cortada por ruídos a fritar a ligação.

«Não sei se... consigo voltar para casa», acaba ele por dizer.

«Onde estás? São...», tira o telemóvel da orelha para ver as horas, «...quatro e tal da manhã.»

«Não sei... E não sei se consigo voltar para casa...» A voz dele, por entre cortes, transmite calma. Ela sabe que ele é assim, que se comporta tranquilamente nos momentos mais complicados – algo não está bem.

«Como assim, não sabes onde estás? Estás sozinho? Mal te ouço...»

«Estou a conduzir, está a chover muito, pouco ou nada consigo ver da estrada. O GPS não funciona, o pára-brisas está sempre a encravar, o rádio só dá um apito sem interrupção.»

«Mas onde raio te foste meter? Disseste que ias passar em casa dos teus pais, que nos tinham feito bacalhau com natas para almoçarmos amanhã, e que depois ias beber um copo rápido com o pessoal. São quatro e tal da manhã!»

«Não sei onde estou!»

«Estás bêbado?»

«Não! Bebi duas cervejas.»

«Estás a meter-me medo! E isto não são horas para estas brincadeiras! Vem para casa!»

«Não sei mesmo onde estou! E não sei se consigo voltar para casa...»

Palavras ininteligíveis, estampidos, picadas como se pedrinhas estivessem a bater em vidros. «Pára o carro, não continues se não sabes por onde estás a ir. Por favor!»

«Parece que estou a andar às voltas, as árvores são sempre iguais, já vi a mesma paragem de autocarro não sei quantas vezes, dou com vários cruzamentos, e, do pouco que vejo, os sinais só me permitem virar sempre para o mesmo lado. Chove mesmo muito, está tanto vento que me abana o carro e está escuro! Nunca vi esta estrada.»

Bem acordada e alarmada, repara que, lá de fora, não se ouve um pingo de chuva. «Só podes estar a gozar comigo! Não está a chover! Estamos no pico do verão. Pára com a brincadeira, estás bêbado! Tu não és assim! O que é que te deu hoje? Vem para casa!»

«Não sei se consigo...»

«Amor, pára...» E começa a chorar.

«Desculpa. Não estou a brincar, estou mesmo perdido.»

«Não passa por aí ninguém?» Silêncio. Sons estrépitos. Silêncio. Mais sons irregulares. «Estou!?»

«Estou sozinho. Estou sozinho e perdido!», grita. «Não sei se consigo voltar para casa!», grita com mais agonia, enquanto se ouvem batidas, murros, que ela julga serem do namorado a bater no volante.

«Calma! Calma, amor, por favor...», pede ela, a chorar cada vez mais.

«Nunca pensei que fosse acabar assim, perdido, sem conseguir voltar para casa.»

«Tu vais voltar! Estejas onde estiveres, vai parar de chover. Não conduzas mais, aguenta mais um par de horas, vai amanhecer, vais saber onde estás e vais voltar.»

«Não sei se consigo...», a calma dele já era apatia, resignação.

«Olha, começou a chover aqui também. Não deves estar longe. Acalma-te. Vamos acalmar-nos...», pediu, agora sem lágrimas e com carinho. Voltou a esticar o braço para o lado oposto e vazio da cama. Apertou o lençol, enrodilhando-o na mão.

Deixou de o ouvir. Até que...

«Já me fiz à estrada outra vez. Tenho de encontrar um caminho. Caraças, não há-de ser assim tão difícil! Mas nunca estive aqui.»

«Não, não! Pára o carro!»

«Mas eu quero ir para casa! Só não sei se consigo...»

«Eu também quero que venhas. Passei o dia com tantas saudades tuas, tão angustiada. Tenho tantas saudades tuas!»

«Tenho sempre saudades tuas. Terei sempre saudades tuas... Nunca te vou esquecer. Nunca me esqueças.»

«O quê? O que é que isso quer dizer?»

«Amo-te.»

«Amor...?»

«Desde o primeiro dia, quando te disse para leres aquele livro, naquela livraria...»

«Pára! Pára com isso! Acabou a brincadeira, por favor!»

«Não consigo voltar para casa... Desculpa.»

«Volta!»

«Amo-te.»

«Eu também, eu também! Mas volta!»

«Não consigo...»

«Não faças isso!»

«Não quero fazer. Simplesmente não consigo deixar de estar perdido. E está tudo bem.»

«Não, não está!»

«Pois não... Tens razão! Quero muito voltar, mas desculpa, não vou conseguir...»

«Anda para casa! Vem para ao pé de mim!»

Do outro lado, um respirar abafado, como que a perder o ar, a arfar com aflição e ânsia, mas, paradoxalmente, sem descontrolo. Ele ia falando, baixinho, impercetível, a falar consigo mesmo, ela não percebia nada. Os ruídos elétricos misturavam-se com ventanias e pingos grossos.

«Não consigo...»

A chamada caiu.

E ela acordou. «Era um pesadelo...» Estava com frio. Tinha um pé, descalço e desprotegido, fora da cama. Estava baralhada. «Sim, foi só um pesadelo.» Pegou no telemóvel, que lhe iluminou a cara no meio da escuridão. Quatro e doze da manhã. «Ainda tenho mais umas horinhas para dormir...» Pousou o telemóvel na mesinha de cabeceira, voltou a meter o pé debaixo do lençol, virou-se para o outro lado e sorriu enquanto abraçou o namorado. O corpo dele estava rijo e arrefecido, e não reagiu como sempre fazia quando ela o abraçava durante a noite, para se aconchegarem.

Passou-lhe a mão pela cara, suavemente. «Amor...» Abanou-o, levemente. «Amor?» Puxou o seu corpo pesado contra si. «AMOR!?»

Não conseguiu regressar.


(09/02/2025)

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