quarta-feira, 28 de maio de 2025

cada vez mais fundo, este é o meu inferno

Os tiranos choram sozinhos
enquanto as picaretas balançam de cima para baixo.


Aqui estou, nu e inadequado, um recipiente de carne destinado a apodrecer como tantos antes de mim e como tantos que ainda estão por vir, para tomar o lugar que hei-de deixar vago. Mas antes, onde quer que estejas, deixa-me oferecer-te o meu amor, se é que ainda podemos fazer algo com isso. Que a terra não me consuma já sem antes ouvires esta súplica. Fui orgulhoso, invejoso, egoísta e vil, e banqueteei-me de tudo com mordaz ganância. Mesmo assim, ofereço-te o meu amor, se é que ainda podemos fazer alguma coisa com isso, onde quer que estejas.

Toda a carne envelhece, e a minha já apodrece antes de realmente ser velho. Começo a ficar negro, as articulações chiam, os ossos por dentro tornam-se areia fina e cada passo magoa.

Estamos vinculados. Um vínculo que se estica pelo espaço e pelo tempo. E mesmo que nunca mais nos encontremos, de certa maneira, pelo que aconteceu, somos um do outro. Andei perdido, andei à procura disto e daquilo, sem saber o que poderia encontrar, e nesses caminhos tortuosos tive visões capazes de me fazer arrancar os olhos, para ficar cego. Mas as imagens não seriam apagadas mesmo que ficasse sem olhos. O fogo selvagem que vi fez com que tudo parecesse condenado, e por isso não adiantava arrancar os olhos e ficar cego.

Nu e a apodrecer, às vezes, por breves momentos, vejo-te e sinto que nada nos pode quebrar. Um osso partido seria somente um pequeno abanão, mas aquele fogo alto, barulhento e doido faz-me estremecer e parece, sem mácula, que tudo está condenado. Dessas chamas que avançam sobre mim, sobre os olhos que não arranquei, sobre a picareta que seguro e que não chega para me defender, elevas-te sem um arranhão em direção a um céu azul muito claro que se vai tornando escuro até te engolir totalmente quando já é noite.

Quando regresso, reparo que à minha volta isto é tudo sobre homens velhos e o que eles vêem quando vão para uma dimensão estranha e horripilante como a minha. Quando acordam, vejo-lhes na cara como estão ansiosos por planear o seu último dia e como se irão daqui com grande classe. Infelizmente, a realidade não lhes permite alcançar o cavalheirismo com que pretendem pôr termo a tudo. Tal como eu, aprisionados, envelhecidos, apodrecidos e arrependidos, não acabarão galantes.

Temos de perceber, aceitar mesmo, que tentar discernir o mundo através de visões que nos invadem quando já estamos moribundos não vai dar-nos aquilo que desejamos. Os tiranos choram sozinhos.

Mais um dia, mais castigo, mais dores. Nus, magros, podres, cheios de feridas, já sem dedos dos pés e sem unhas nos carcomidos dedos das mãos, esburacamos a pedra presa, como nós, à terra compacta. Doridos e ensanguentados, cavamos. Centímetro a centímetro, tentamos ir mais fundo para, quiçá, podermos esconder-nos debaixo do solo como espectros que não se descobrem na luz e que precisam do breu para brilhar. A cada centímetro alcançado, em direção a profundezas negras, ouvimos o chamamento.

Através de poeira e rochas, ouvimos o chamamento por sangue e ossos. E esgravatamos. As nossas almas são compelidas a isso, a irem, encerradas nestes corpos desajeitados e famintos, um bocadinho mais fundo. Tentamos a nossa sorte, à procura de um inferno que, pelo menos, não seja este. Encostamos o ouvido ao solo áspero que nos fere a pele purelenta e ouvimos um rosnado surdo, mas cheio, que faz tremer pedrinhas que rebolam infinitamente. É o chamamento.

Já ultrapassámos as pedras mais bicudas que nos magoam mais do que tudo o resto. Vamos em direção ao cerne, ao núcleo, à promessa de um inferno que, pelo menos, não seja este. Os nossos corações bombeiam loucamente. Estamos às portas da morte. Que bom. Os nossos olhos fixam-se na meta final. Mais um esforço. O rosnado é cada vez mais alarmante, mais próximo. Tudo depende de nós. É o chamamento, a promessa. É sangue e ossos que lá de baixo querem, então é sangue e ossos que terão.

É um feitiço inquebrável o de esgravatarmos um bocadinho mais fundo, por entre pó e pedras, ensanguentados e pútridos. Em frente, para baixo. Pelos nossos feitos menos recomendáveis, aqui vamos, devagar, devagarinho, amaldiçoados a pressionar e a perfurar com frágeis picaretas até ao fundo mais fundo possível. Incansáveis como as abelhas que não vislumbramos há largas temporadas, seguimos como um enxame. Cavamos e cavamos até que finalmente nos perderemos no seio de um inferno, seja ele qual for, mas que pelo menos não seja este. Ninguém ousa olhar para trás, para o que há muito deixámos destruído nas nossas vidas pouco estimadas, nem para cima, para um céu de várias cores que pararam de ser sedutoras. O céu fecha-se mais um pouco sempre que conseguimos ir mais fundo.

É tudo mentira. Não há outro inferno que não este.

Mais um dia, mais castigo, mais dores. Somos como Sísifo.

O sol queima-me a pele enquanto as costas doem excruciantemente sempre que a picareta balança de cima para baixo. Os buracos nas pedras e no solo rígido são cada vez mais, mas não saio do mesmo sítio. Há sempre mais pedras para rachar, nascem como parasitas incontroláveis. As horas custam a passar até que o sol se põe neste inferno que queria que fosse outro.

Mais uma manhã, mais um dia difícil. A rispidez do tempo e dos rochedos corroem-me o corpo. A loucura de querer sair daqui é tanta que, escavando à procura de outro lugar, me faz atirar a picareta para longe e revolver a terra bruta com as próprias mãos. É sangue e ossos que querem, é isso que vão ter. Pacientemente os terão. Dizem que isto é um inferno, mas é o meu inferno.

Os abutres voam rente ao meu pescoço. Sem pressa aguardam que o meu corpo caia uma última vez e que continue a apodrecer inanimado. Mas ainda não é hora para o festim.

Perfuro um pouco mais fundo. Dos lábios secos, esbranquiçados pela poeira que se torna lama na boca, escapa-me uma praga quando me lembro do momento em que coloquei as balas no revólver. Uma, duas, três orações sabe-se lá a quê e um tiro. À distância ouvem-se sinos que vão desmaiando comigo. Era um inferno, era o meu inferno.

O pó não assenta, o vento é devastador. Os abutres desaparecem e, com eles, os meus vestígios. Apenas um permanece. Fica para trás uma velha picareta com o cabo partido e nele escrevinhado um nome ilegível, como um fantasma do passado.

Mas volto, voltarei sempre a este inferno. O corpo nu e a apodrecer, as visões de fogo, o amor perdido que se transcende aos céus e eu cá em baixo a vê-lo partir, o chamamento, o rosnado, a promessa de outro sítio que não este e que deverá estar um bocado mais ao fundo, por baixo de mais uma rocha, no escuro onde posso brilhar novamente. Volto sempre, de picareta na mão gretada. Mais um dia, mais castigo, mais dores. Poderão dizer que isto é um inferno, mas é o meu inferno.


(15/05/2025)

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