(adaptação
baseada num texto publicado em 1922,
sobre
uma estória de 1856)
Corria
o ano de 1856, e, reinando D. Pedro V, corria também pelo país a
cólera-morbus, que atacava, sem parcialidade, novos, adultos e
velhos com cãibras, diarreia e vómitos fortes. Desenvolvendo-se em
Lisboa, a região norte e centro virada para o mar também teve a sua
quota-parte de pestilência, de Viana do Castelo à Figueira da Foz.
Ílhavo,
terra de homens que pescam no mar o sustento ou a morte e de mulheres
que amanham em terra o peixe ou a sepultura no peito dos que lá
ficam entre ondas e redes, não escapou ao terrível flagelo que
dizimou centenas de criaturas. Sem escolher especificamente entre
jovens e velhos, ricos e pobres, pescadores e agricultores, a
mortandade espalhou-se com um terror e um desânimo profundo que ia,
surpreendentemente, abalando as almas fortes dos ílhavos.
À
doença, já por si calamitosa, juntou-se a fome que redobrou a
aflição e a angústia, causando, nas gentes ribeirinhas, coletivos
e abafados suspiros de desalentada esperança. Os barcos-do-mar
imobilizaram-se, porque os braços que remavam e puxavam as redes
quase não se viam a trabalhar ou a acenar no regresso à praia.
Esses braços, fortes e morenos, salpicados pelo salitre, estavam
agora pendurados no rebordo de padiolas ou estirados em denegridos
caixões. Havia ainda os que, já desolados pelos sintomas, com medo
de serem acusados de cobardia, se faziam ao mar na mesma, para, no
pico da fraqueza, simplesmente baldearem da embarcação. «Ó Zé,
agarra a corda, home!» Muitas vezes, o mar nem estava
assustadoramente bravo e salvar-se-ia, com relativa facilidade nessas
condições, um pescador forte e obstinado como o Zé, ou outros. O
que os companheiros não sabiam é que o Zé – e outros, para não
serem enxovalhados pelos veteranos ou ameaçados pelos arrais mais
atrozes –, foi ao mar sob agudas fisgadas que lhe perfuravam a
barriga sem ferida e sangue aparentes. Caídos às águas,
deixavam-se afundar, sem luta. A boina a boiar era o que, por mais
uns minutos, sobrava do desafortunado. E depois, só mar. Remava-se
de volta ao areal em silêncio sepulcral, ouvindo-se apenas a
marejada e o ranger dos remos. Os que o mar não levava, lutavam em
terra – e cediam, por fim, estrebuchando até à morte.
Aquele
junho, que costumava antever o verão quente de julho e as romarias
de todas as Nossas Senhoras de agosto e setembro, era um mês de
ceifa humana. As gosmas dos moribundos subiam-lhes pelas gargantas
até às bocas em vómitos esverdeados com um cheiro nauseabundo.
Quem não sufocava com a lama viscosa vinda das entranhas, sobrevivia
mais um bocado com o peito a arder de tanto tossir e escarrar com a
ajuda da heroica e magnânima Leocádia Ferraz, que ia auxiliando os
atacados com sucessivas abluções de água a ferver.
Na
casa que viria a ser do senhor Cartaxo, na Rua Direita, improvisou-se
um pequeno e humilde hospital para onde traziam os desgraçados sem
família. Muita dor se mitigou ali, muitos doentes morreram a ouvir
palavras de esperança e sentido carinho. «O seu filho está a vir
do Brasil, tenha calma.» «Claro que vai voltar a ver o mar, agora
descanse um pouco.» «Nosso Senhor Jesus dos Navegantes não a vai
abandonar.» Havia quem já nem ouvisse a frase completa.
Para
os lados da Costa Nova, a noite ia alta, assim como os ais e os
roncos de desespero que ecoavam pelas sombrias vielas dos palheiros.
Quando não havia berros e choros, de doença ou de perda, ouviam-se
vozes mais serenas e passos apressados de pescadores valentes que
carregavam para as bateiras os corpos mortos dos flagelados, a fim de
os transportar para a outra margem, onde ficam as Gafanhas e o
cemitério de Ílhavo. Já indiferentes e automatizados pela tarefa,
os homens firmavam os seus pés no ventre dos cadáveres empilhados
para a remada ser mais forte. Tamanha era a descarga de força que,
várias vezes, os corpos – uns ainda moles, outros mais hirtos –
rebolavam para cima dos vivos a remar ou borda fora. Os que estavam
mais no fundo da pilha assustavam quando, do nada, esgazeavam os
olhos mortiços e nublados.
Com
os pés na areia, seja a da Costa Nova ou das Gafanhas, o padre
Fernando, tido pela comunidade como um santo levita, há muitos dias
que não tirava a sotaina e o sobrepeliz, pois andava de povoação
em povoação, fosse dia ou fosse noite, sem descanso, a abeirar-se
dos doentes, a confessar este e a consolar aquela.
A
30 de junho, pela meia noite, viu-se a si mesmo no sul da Costa Nova,
num miserável palheiro, a afagar com orações um pescador às
portas da morte. A hora era já adiantada quando o antigo marítimo,
com voz fraca, humildemente balbuciou: «Adeus, senhor padre
Fernando...» E morreu.
De
pé, no topo das dunas, o padre Fernando era uma estaca. A batina
dançava, flutuava, livremente à sua volta por causa da aragem
branda que vinha do sul, perfumada de maresia. Virado para o mar –
que não não via, mas que sentia através da audição e pelas
narinas –, tinha os olhos rasos de água e o coração oprimido.
Com tristeza, mas ainda com mais fé, elevava a Deus os seus
pensamentos, implorando a misericórdia da Senhora da Saúde, que,
como cria o padre Fernando, nos céus velava a sua Costa Nova. E
chorava a bom chorar, sozinho e sem timidez.
Subitamente,
vindo do fundo, um barulho brusco cortou o silêncio – só ouvir as
ondas também é estar em silêncio – e sacudiu a postura estoica
do sacerdote. Numa correria trágica e rápida, esquecendo as
lágrimas, salgadas como o mar que evaporavam da face, desceu a
ladeira e travou à beira da luz duma candeia de azeite. Dois homens
rodeavam um pestilento. Um amarelo de bílis escorria-lhe pelos
cantos da boca ressequida pela febre. Suava muito. Num último ato de
bondade, o padre Fernando sentou-se no chão e colocou a parte
superior do corpo do doente no seu regaço, como se de um bebé se
tratasse. Depois de ter respirado muito fundo e estremecido, a cabeça
do enfermo tombou. «Levem-no, que está morto», disse o padre.
Os
outros dois homens pegaram no defunto e levaram-no para a bateira
mais próxima. Remaram para o outro lado da margem e, na Gafanha, já
na zona da Mota, transladaram o morto para uma padiola. Um à frente
e outro atrás, carregaram o corpo pelo antigo caminho de areia em
direção a Ílhavo.
Os
dois vivos, atrevidos pescadores labregos que pouco conheciam da sua
própria terra, caminhavam silenciosos e abatidos em contraste com as
extraordinárias façanhas que operavam no mar e que tantas vezes
encorajou a ralé. Em cima dos possantes ombros, a maca rudimentar
tremia e fez com que o morto se revirasse, descaindo-lhe uma das
pernas. Para aliviar o fardo, pararam junto a uma mouteira de
tramagueiras. Ambos fizeram um cigarro e, ao acendê-los, iluminaram
sem intenção o rosto do morto.
«Parece
que o homem abriu os olhos», disse um, ao que o outro respondeu:
«Qual abriu nem meio abriu! Tu não ouviste o senhor padre dizer
“levem-no, que está morto”? Antão está. Pega que se faz
tarde, são duas horas.» «Põe-lhe a perna para cima», ordenou o
primeiro.
Ergueram
a padiola e continuaram a caminhar, atirando para o ar prolongadas
fumaças dos cigarros que ainda duravam. Pesadas nuvens, que pareciam
feitas dum negro veludo, encobriam um raquítico luar que, quando
aparecia, esbatia a figura do morto na areia branca das dunas. Voavam
aves agoirentas, chegavam rumores do mar, como alguém a gemer, mas
nem uma casa ou uma luz se via, muito menos gente. Caminharam mais, a
modos que sem rumo, pisando o solo, pé ante pé, com temor, através
de um carreiro duvidoso até serem primeiro alarmados e depois
paralisados pelo sino que dava meia hora para as três da madrugada.
Estavam, sem saber, junto à ponte Juncal. Do outro lado, Ílhavo.
Passaram
a ponte e seguiram pelo estreito e delgado caminho da Barquinha,
descendo depois o pequeno declive do Outeiro. Numa encruzilhada,
viram-se novamente indecisos, sem saber por onde ir. «Ó que diacho!
Qual será o caminho pró cemitério?»
Erguendo
a cabeça na escuridão e apontando com a mão direita, o morto
respondeu: «Quando eu era vivo ia por aqui, agora que sou morto,
levem-me por onde quiserem!» E levaram, sem ais nem uis, seguindo a
indicação do morto com vida…
Encontrado
o cemitério, aí se abriam profundas covas, como é costume em tempo
de epidemia. Numa espécie de vala comum, sepultavam-se três, quatro
ou mais cadáveres. Trabalhava-se todo o dia e toda a noite.
O
homem da padiola que os dois pescadores da Costa Nova julgavam morto,
mesmo depois de ter falado, foi estendido num robusto caixão de
pinho e este lançado para uma sepultura onde já se encontravam
outros dois. E nem uma lágrima, nem sequer uma reza. Só trabalho.
O
coveiro, um tisnado e forte adulto rapagão, a quem a cólera parece
não ter atingido, atirou-se à enxada e começou a lançar pazadas
de terra vermelha, em contraste com a areia clara das praias ali tão
perto, para cima dos caixões. A manhã rompia quando o coveiro
alisava a campa improvisada. Retirou-se. Exausto, atirou-se para cima
duma velha lousa, que certamente iria ser usada para tapar uma
sepultura mais requintada, e adormeceu.
Tinham
passado quinze dias, e a cólera tendia a desaparecer. O povo
ilhavense, agora mais animado, juntava-se no adro da igreja a dizer
preces e louvores em direção ao céu, agradecendo as melhorias ou a
pedir que isto não voltasse a acontecer. Dali seguiam para o
cemitério, para se chorar a perda dos entes queridos. Muitas pessoas
não encontravam as sepulturas dos que muito amaram devido à
quantidade de inumações desorganizadas que tinham acontecido nos
últimos tempos, o que redobrava de amargura a sua profunda dor.
Entretanto,
o coveiro-vígia, no cemitério em permanência, vinha notando há
dias que, da cova onde se enterrou o da padiola, surdia por vezes um
ruído vago e estranho, como um som de assobio fraco, à semelhança
do sibilar do vento em ciprestes. «Que diabo seria aquilo?»,
cismava, franzindo a testa.
Certa
manhã, a sua curiosidade já demasiado espicaçada, levou-o ao local
em concreto. Deitou-se de bruços sobre o coval e colou o ouvido à
terra. Agora, depois do cisma, não lhe restavam dúvidas: alguém
falava baixinho. E ouvia soquear em tábua.
«Quem
quer que seja, está aos murros no caixão», pensou o coveiro-vígia.
E, de repente, com vigor, o morto gritou: «Eh gente! Eh de cima!» O
coveiro deu um salto, tomou ar com o sobressalto, os cabelos ficaram
eriçados como a rama de vassoura e, atirando o chapéu com
violência, tornou a deitar-se, encostando o ouvido ao chão e
berrando assim:«Eh de baixo! Quem chama é gente, ó quê?!»
«Eh!
Jaquim Salimo, sou eu, homem! Então eu fico aqui
eternamente?! Olha que já se me acabou hoje a broa de pão que
trazia no bolso!», respondeu o morto, que afinal estava vivo.
Sem
mais palavras, o de cima, vivaço e com pressa, pegou na enxada e,
com a fúria de um leão ferido, começou a cavar até chegar à
tábua. Nervosamente, com o olho da enxada deu tamanha pancada no
caixão que as tábuas superiores saltaram em bocados.
Vagarosamente,
pachorrentamente, o suposto morto esfregou os olhos, saltou dum pulo
para cima e, agarrando-se ao Salimo, deu-lhe tal esticão às
costelas que este, aflito e sem ar, resmungou: «Eh ti
Salvador, parece que nem esteve quinze dias sem comer! Anda daí
beber um quarteirão de aguardente, homem!»
E
lá foram os dois, de braço dado, para a loja da ti Calçoa.
-/-
Nota
O
texto original (que não este – já lá vamos), assinado
simplesmente por Jorge Manuel, foi publicado na edição de 14 de
maio de 1922 do jornal “O Ilhavense”, sendo escrito em
post-scriptum que “correu fama este facto” do morto-vivo e
“houve nesse tempo quem risse e quem chorasse”. Sabe-se também
que no ano da publicação, 66 anos depois da suposta ressurreição,
ainda existia a casa onde habitou o ti Salvador, precisamente
na Viela do Salvador, em Ílhavo. Após breve pesquisa toponímica,
podemos dizer quase com certeza que o nome da viela, localizada
perpendicularmente à Rua Serpa Pinto, nada tem a ver com o ti
Salvador, existindo pelo menos desde o Séc. XVIII. Sabe-se ainda que
a casa do morto-vivo ficava em frente à antiga habitação das tias
Angélicas.
Terra
de muitas histórias sobre o mar – umas escritas, outras
transmitidas oralmente –, esta do morto-vivo contrasta com essa
corrente, sendo uma das poucas lendas, ou estórias para ser
mais correto, relacionadas ao terror e que está publicada de
qualquer forma, neste caso num jornal.
Amante
deste tipo de historietas, usando muito disto como inspiração para
os meus livros anteriormente editados, decidi pegar no texto original
e, sem mudar o rumo do enredo, dar-lhe mais corpo num formato mais
livre que não esteja encurralado no espaço que uma página de
jornal permite. Se me julgo no direito de o fazer, esse é outro
assunto que penso não arreliar ninguém, muito menos os meus
conterrâneos ilhavenses, que são, ainda assim e muitas vezes,
propensos a arreliações imaturas.
No
fundo, este é um exercício de adaptação que há muito desejava
fazer. Tomei a liberdade de adicionar alguns momentos de ação ou de
paisagem emocional, assim como também pretendi utilizar expressões
e estruturas frásicas presentes no texto original. Pensei até em
aumentar o final, deixando no ar, por iniciativa própria, que hoje,
em 2024 e nos anos vindouros, ainda se ouve o ti Salvador a
andar pela viela, a rir-se da sua ressurreição e talvez a enxotar a
morte, a gozar com ela. O que é certo é que, apesar de alguma piada
que isso poderia trazer, não é o que se conta por Ílhavo; portanto
preferi ser mais tradicional em relação ao escrito de 1922 e deixar
como está, com um final infantil e patético, não no sentido da
estupidez mas no da inocência e sem maldade – afinal, alguém
morreu, ressuscitou ao fim de quinze dias e, sem perguntas, segue-se
para a loja da ti Calçoa emborcar uma aguardente.
Por
fim, acho também fascinante como o relato começa pesaroso e termina
comicamente, como se isto fosse uma alegoria aos tempos conturbados
da cólera que atacou no Séc. XIX, como se esta lenda, ou estória,
fosse naquela altura o #VaiFicarTudoBem dos nossos tempos.
(19/09/2024)