sábado, 1 de novembro de 2025

Terramoto de Lisboa, 1755: o abalo também foi filosófico

Em todas as cruzes
Tábuas partidas
Quarenta igrejas
Caídas
E dos conventos
Nem um lamento
Nem um sinal de vida
Todos os santos não chegaram
Faz dia em Portugal!*


Na manhã de 1 de novembro de 1755, Lisboa foi arrasada por um terramoto, seguido de um maremoto. Sendo o Dia de Todos-os-Santos, as ruas e as igrejas estavam cheias de fiéis, o que contribuiu para o elevado número de mortos, que varia entre 10 e 50 mil. Cerca de 10 mil edifícios ficaram reduzidos a escombros. Lisboa tremeu, ardeu, inundou e ruiu.

Portugal podia já ser falado por toda a Europa desde pelo menos o Séc. XV, devido à expansão para o Norte de África e pela descoberta de novos mundos a oriente e a sul, mas nunca fora tão discutido como a partir daquele fatídico 1º de Novembro. Para além de se considerar que a data marca o nascimento da sismologia moderna, os debates filosóficos foram o regalo dos grandes pensadores da época, como Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant. É que até então, a Humanidade, a viver sob o jugo da Inquisição, relacionava este tipo de desastres à causa divina, mas o Iluminismo ia mudar a Europa.

Voltaire, um defensor da liberdade de expressão e duro crítico da Igreja Católica, utilizou esta catástrofe para atacar um alvo específico: a filosofia otimista de Leibniz e Alexander Pope, em que se defendia que este é o melhor dos mundos possíveis e que não nos podemos queixar dos males porque desconhecemos os grandes desígnios de deus, não havendo, portanto, maldade. Ora, no seu magnum opus “Cândido, ou o Otimismo” (1759), Voltaire, mestre da ironia, dedicou-se a desbaratar tais conceitos, ridicularizando sociedades, governos, teólogos e filósofos. E onde é que Lisboa entra nisto tudo? Logo no início do conto, quando Cândido chega a Lisboa no dia do terramoto. Crente de que a criação do universo foi operada por uma inteligência superior que pode ser conhecida através da Razão, Voltaire fere a Inquisição e a Igreja Católica com grande ironia e sentido cómico, escrevendo: «(…) Os sábios do país não encontraram meio mais eficaz, para prevenir uma ruína total, do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé; pois a Universidade de Coimbra tinha decidido que o espetáculo de queimar a fogo lento algumas pessoas, com as cerimónias e formalidades do estilo, era o segredo infalível para impedir a terra de tremer.»

Antes, em 1756, Voltaire já tinha atacado o otimismo com “Poema sobre o desastre de Lisboa”, em que pergunta, ironicamente, como é que a bondade de deus permitiu tal tragédia, rejeitando a ideia de que o mal não existe na governação divina. Escreveu: «Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios / Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias? / Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.» Mais à frente aponta diretamente aos seus adversários: «“Um dia tudo estará bem”, eis aí a nossa esperança; / “Tudo está bem hoje em dia”, eis aqui a ilusão.»

Sabido que Voltaire angariava algumas amizades - como a imperatriz russa Catarina, a Grande -, era mais propenso a ter inimigos. Um desses rivais era Rousseau, cujas ideias influenciaram profundamente o Direito e conceitos como Estado, poder e soberania, que nos chegam até à atualidade. Rousseau escreveu a Voltaire a “Carta sobre a Providência”, em que defende o otimismo, sem propriamente defender o mote de que este é o melhor dos mundos possíveis e dando um novo tratamento à questão do mal, deslocando-o de deus para o homem. Rousseau chega ainda a entrar em território pessoal, ao referir a suposta hipocrisia de Voltaire por este se preocupar com um terramoto numa cidade como Lisboa, onde vivem as pessoas pelas quais temos consideração, e não querer saber dos tremores que ocorrem em África.

Tentativas de explicação divina à parte, Kant, que nos deu o imperativo categórico (algo como: realiza contigo mesmo antes de impor um princípio aos outros), pretende ser mais empírico e científico em vários textos que desenvolveu sobre o terramoto de Lisboa. Achando que o subsolo era oco, tamanha a facilidade com que tudo tendia a desabar, Kant aconselha a não se construir mais ao longo do rio Tejo, já que é esse curso de água que dita a direção dos tremores em Lisboa, não nos esquecendo que, e auxiliando-nos em registos, a cidade já tinha sofrido quase uma dezena de abalos nos últimos quatro séculos. Para Kant, a Humanidade deve adaptar-se à Natureza e não o contrário. E sublinha também a falta de racionalidade: «Como o terror lhes rouba a reflexão, julgam que estas grandes desgraças são das tais que não se podem minorar por qualquer precaução e supõem que a dureza do destino só pode ser abrandada por uma submissão cega e entregam-se completamente à misericórdia ou à cólera divina.»

Recorde-se ainda as palavras de Johann Wolfgang von Goethe, nome maior da literatura alemã, que, crescido numa família luterana, escreveu em adulto que a sua fé foi abalada quando, logo aos seis anos de idade, soube dos acontecimentos em Lisboa: «Talvez o Demónio do Medo nunca tivesse difundido tão rápida e poderosamente o seu terror sobre a Terra.» De facto, o medo instalou-se, com sermões fanáticos por toda a Europa e com discursos inflamados sobre a ira e a vingança de deus a abaterem-se sobre os pecadores. Contudo, a Ciência e o novo pensamento prevaleceram, despertando nos mais iluminados uma viragem no seu raciocínio outrora limitado por deus.

De 1 de novembro de 1755 ficam os mortos, o apocalipse anunciado como inevitável ou as ruínas do Convento do Carmo, mas também o renascimento da Lisboa pensada por Marquês de Pombal, que ainda hoje se vislumbra, e o início da ideia de que a Ciência se sobrepõe à Religião. E no passado dia 26 de agosto [de 2024], a Terra lembrou-nos que aquele Dia de Todos-os-Santos, agora tão longínquo, pode voltar a acontecer.


(Publicado originalmente no jornal "O Ilhavense", nº 1360, de 1 de novembro de 2024)
* Moonspell, faixa "Todos os Santos", do álbum "1755" (2017)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

a música extrema contada em crimes e mitos

suicídios, homicídios,
depressão, ritualismo, fanatismo, raptos
e um eclipse lunar


Gorgoroth, Mayhem, Gaahl e Faust
Em 2004, os Gorgoroth passavam por Cracóvia, na Polónia, para darem um dos concertos mais míticos da história do black metal: arame farpado, figurantes nus pendurados em cruzes e cabeças de ovelha decepadas. Foram acusados de blasfémia e crueldade animal, sendo que a primeira terá tido mais força por algo tão extremo ter acontecido no país natal do papa João Paulo II. Os Mayhem também o fizeram, com cabeças de porco, mas isso é um pormenor ao lado dos homicídios e suicídios. Dead (vocalista) suicidou-se em 1991 - primeiro cortou os pulsos e a garganta, depois disparou um tiro na cabeça. Euronymous (guitarrista), ao encontrar o cadáver, tirou fotos ao corpo do colega, originando a famigerada capa da bootleg "The Dawn of Black Hearts" (1995) - nada disto com o consentimento de Necrobutcher (baixista), que saiu dos Mayhem temporariamente. Varg Vikernes, de Burzum e por pouco tempo em Mayhem, também envolvido nos incêndios das igrejas norueguesas, assassinou Euronymous, à facada, em 1993, depois de um desentendimento no apartamento da vítima. Voltando a Gorgoroth, o ex-vocalista Gaahl ficou igualmente conhecido por torturar um homem durante várias horas. A vítima chegou a afirmar que o músico começou, a certa altura, a coletar o sangue num copo. De outra banda seminal do black metal, Faust (Emperor) não gostou de ser assediado por um homossexual, de nome Magne Andreassen, acabando por matá-lo em 1992.

Jon Nödtveidt e o suicídio ritualista
Líder dos extintos Dissection, Jon Nödtveidt era mais do que um músico. Após "Storm of the Light’s Bane" (1995), o sueco seria condenado, em 1997, a dez anos de prisão (tendo cumprido apenas sete) por ter participado no homicídio de Josef ben Meddour. De volta à liberdade em 2004, Jon envolver-se-ia com a Misanthropic Luciferian Order, uma seita que, com os seus escritos, influenciou o guitarrista/vocalista a compor "Reinkaos" (2006). Tiraria a própria vida a 13 de agosto de 2006, com um tiro, mas não foi um mero suicídio. O ato terá acontecido dentro de um círculo de velas, e ao lado do corpo foi encontrada uma grimória satânica (considerada a Liber Azerate), cenário que o guitarrista Set Teitan viria a tornar público quando mencionado que se tratava antes da Bíblia Satânica, de Anton LaVey. Provavelmente tratando-se de um ato programado, Jon Nödtveidt considerava que «o satanista decide a sua própria vida e morte, preferindo morrer com um sorriso nos lábios quando atinge o pico da sua vida, quando já realizou tudo (...). O satanista morre forte, não de idade, doença ou depressão, e escolhe a morte em vez da desonra! A morte é o orgasmo da vida!» (in “Metallion: The Slayer Mag Diaries”, de Jon Kristianssen)

Stalaggh usam doentes mentais como vocalistas
Anónimos e passados dos carretos, Stalaggh é dos projetos dark ambient/noise mais interessantes da história da música extrema. Um artigo da Metal Injection, de 2011, até refere que o grupo raptou pacientes mentais para gravar as vozes de "Projekt Misanthropia". Se calhar não foi bem assim, mas mesmo que tudo seja alinhavado com as instituições psiquiátricas, a intenção para o álbum "Vorkuta" continua a não deixar de ser fantástica e horrenda ao mesmo tempo: numa entrevista concedida à Noisey, em 2013, um dos membros conta que decidiram usar os berros/gritos de crianças para o referido disco, porque têm «uma forma fascinante de gritar». Contou ainda que uma das meninas estava em tamanho trance que começou a sangrar dos dedos por raspar com as unhas no chão. Mito urbano? A História também se alimenta de rumores.

Nattramn, o mãos de porco
De mito urbano em mito urbano chegamos a Nattramn, vocalista/letrista dos suecos Silencer. Mesmo que "Death - Pierce Me" (2001) seja um disco muito badalado no nicho do depressive suicidal black metal, é crível que o hype à volta da banda não venha exatamente da música, mas da insanidade (verdadeira ou não) de Nattramn. Encarcerado num hospital psiquiátrico após, alegadamente, ter tentado matar uma menina de cinco anos com um machado, o sueco é conhecido pelas próteses que lhe conferem mãos de porco. A sua paixão por suínos é tanta que, em 2011, lançou o livro "Pig's Heart" (original "Grishjärta"), que consiste em poemas, textos curtos e letras de músicas. As cópias existentes são assinadas pelo próprio, perguntando: com que mãos?

Músico tailandês assassinado por «manchar o satanismo»
Tínhamos acabado de entrar em 2014, mas Samong Traisattha (aka Avaejee) não mais passaria tempo neste mundo. O baixista/vocalista dos tailandeses Surrender of Divinity foi assassinado em janeiro desse ano por um fanático que, para além de detestar budistas, cristãos e muçulmanos, queria pôr termo à vida levando com ele alguém que manchasse o satanismo. O feliz contemplado foi Avaejee, que começou o encontro com umas bebidas e acabou com 30 facadas no corpo. Antes da ocorrência, o criminoso terá escrito no Facebook: «Se não o matar, tenho a certeza que alguém o fará.»

Tafofilia de Macabre
Taphophilia [do grego τάφος (túmulo) + φιλία (amizade)] é uma obsessão por cemitérios e funerais - é isto que Macabre, de Mortis Mutilati, diz sofrer. Recorrendo aos arquivos da extinta Against (predecessora da Ultraje Magazine e da Metal Hammer Portugal), o músico, aquando do lançamento de "Mélopée Funèbre" (2015), foi questionado se esta condição era metafórica ou real. Respondeu: «Tafofilia não é nada metafórica. Passo muito tempo em cemitérios, a olhar para túmulos e a questionar quem eram as pessoas que lá estão e como é que morreram... Principalmente se são crianças ou jovens como eu. É uma obsessão. Sobre Macabre: somos um só. É uma extensão da minha personalidade, a minha parte criativa.» Mas há mais: morte, erotismo e necrofilia andam de mão dada no conceito de Mortis Mutilati - no booklet de “Mélopée Funèbre” até encontramos a Morte a masturbar uma jovem senhora. «Morte e erotismo são dois temas pelos quais tenho obsessão. É como se estivessem a fazer um 69 na minha mente, portanto é claro que não podia evitar o ponto de vista necrófilo. Para mim, arte é a ligação entre morte e erotismo, por isso quis dedicar um álbum a essa trindade.»

Kris Angylus: acne, depressão e uma mão lesionada
Em 2007, Kris Angylus e a sua esposa Monica "Dragynfly" Henson lançavam, com o projeto The Angelic Process, o álbum "Weighing Souls with Sand", um trabalho muito aclamado na cena doom/ambient/drone. Um ano depois, Angylus cometeria suicídio envolto em obscuridade. Numa declaração proferida pela sua companheira (falecida em 2023) podia ler-se que o músico sempre foi considerado clinicamente deprimido e por várias vezes tentou o suicídio. Por outro lado, a medicação que tomava para contrariar a acne causava-lhe dores de estômago, o que não lhe providenciava uma vida serena, e, para piorar, tinha sofrido lesões graves numa mão derivadas de um acidente de viação. A depressão, aliada ao facto de não conseguir tocar guitarra, levou o músico a pôr termo à vida em 2008.

Tójó e o último eclipse lunar do milénio
Meus conterrâneos de Ílhavo, os Agonizing Terror estavam a deixar a sua marca no underground português com as demos "Disharmony in God's Creation" (1995) e "Ways of Existence" (1997). Em agosto de 1999, a cidade ilhavense e o país acordaram em sobressalto com a morte horripilante, à facada, de um casal no lugar de Vale de Ílhavo. Depressa, a Polícia Judiciária ligou o crime ao filho Tójó, de 23 anos. Confessou ter agido sozinho, mas, posteriormente, acusou a companheira Sara, baterista nos Agonizing Terror, de o ter incitado moralmente. Alegadamente, pretendiam herdar a casa e ficar com os seguros de vida do casal. Como se já não bastasse o parricídio hediondo, a comunicação social aproveitou a existência da banda e o eclipse lunar, ocorrido naquela noite, para classificar tudo como um crime satânico. Tójó foi condenado a 25 anos de prisão. Saiu em liberdade, por bom comportamento, em 2017.


(Nota: estes meus textos foram originalmente escritos e publicados na Ultraje Magazine em 2017 e na Metal Hammer Portugal em 2019, tendo sido revistos e levemente alterados em 2025 para este post.)

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Bernardo Santareno nos Mares do Fim do Mundo

«fortes, valentes, humildes e maravilhosamente simples»


Há uns meses, já os dias começavam a ser longos, passou pela redação deste jornal um homem de noventas e muitos anos a querer oferecer-me um livro. «É sobre a pesca do bacalhau. O autor foi meu médico e era dramaturgo», disse-me. Livros e discos são sempre bem-vindos! Contudo, sem ser indelicado, a pressa de sair e ir onde tinha de ir fez com que não me prendesse muito à conversa. O homem foi à vida dele – velhote, de bicicleta e com duas muletas presas ao veículo – e eu também fui à minha. Durante o caminho até casa, olhei melhor para a capa, carcomida e com fita-cola a remendar, onde li o título “Nos Mares do Fim do Mundo” e o nome Bernardo Santareno. Por obra da coincidência, veio parar-me às mãos um livro de Bernardo Santareno. Bela prenda!

Sem querer, abri o livro pelo seu fim, onde está o índice das narrativas, e deparei-me com uma nota escrita a esferográfica: “Zé Ramalhete de Ílhavo / Louvado da Murtosa” à frente do título do respetivo texto, “A disputa”. E fiquei a matutar que a pessoa que me ofereceu o livro podia muito bem ser o Zé Ramalhete. Perguntei ao meu pai se conhecia alguém com aquele nome; disse-me que sim e até corroborou a idade e a bicicleta. O assunto esfumou-se da minha mente e, passado um par de semanas, aquele homem reapareceu. «Então, o livro?», perguntou. Ignorando a questão, contrapus com outra: «Você é que é o Zé Ramalhete da disputa?» «Sou eu, sou», devolveu. «Então, o Bernardo Santareno foi mesmo seu médico?», fiz nova pergunta, e aposto que com um brilho nos olhos por estar perante alguém eternizado em livro por um escritor admirável, mas algo obscuro – para não dizer esquecido. «Foi, foi, no bacalhau. Médico e dramaturgo», reafirmou.


Zé Ramalhete e Ílhavo

Descritos por Bernardo Santareno na dedicatória inicial como homens «fortes, valentes, humildes e maravilhosamente simples», Zé Ramalhete de Ílhavo e Louvado da Murtosa estavam a discutir, sem nunca pararem de trabalhar, há um bom bocado, seguindo-se uma ida à Casa do Leme para, junto do capitão, porem cobro àquilo. A disputa era simples, mas premente: um achava que era melhor escalador do que o outro, e vice-versa. O líder do navio acabou com a discussão mandando-os porta fora, pois era assim que «resolvia ele, sem parcialidade para qualquer das partes, estas contendas, verdadeiras tempestades em copos de água».

Zé Ramalhete foi ainda descrito desta maneira: «(…) de estatura média, ágil e vivo como um gato, continha gritos de Sol, a rebentarem-lhe nos negros olhos faiscantes, no riso dos dentes perfeitos, na pele crispada de frémitos morenos…» E mais, descobre-se depois que era, de facto, melhor escalador do que o seu rival: «O Ramalhete escala mil e vinte peixes em uma hora; o Louvado apenas… mil!», contou o capitão a Bernardo Santareno.

Desfolhando-se o livro, mais referências se encontram sobre as nossas redondezas, em que o autor escreve que «em todas as Gafanhas de Ílhavo, as mulheres amanham a terra. (…) Elas cavam, semeiam, ceifam e colhem: duramente, com sanha viril.»

Por entre relatos, heroicos ou macabros, sobre homens da Fuseta, da Nazaré, de Vila do Conde ou de Caminha, mais ilhavenses fazem parte das memórias do escritor. Em “O sonho”, é recordado que Zé Pinto, tripulante do “D. Dinis” e oriundo de uma das Gafanhas, desapareceu em dia de mar calmo depois de ter sonhado, como contou a Francisco Urze, que «corria pelo fundo mar, perfeitamente livre». Ou o capitão Cajeira (Caveira para os seus subalternos), que, apesar da sua fama autoritária narrada em “Os fantasmas da Gronelândia”, termina como alguém valoroso a capitanear o bacalhoeiro “Rio Lima”. Contra a vontade da tripulação, que recusava a ir aos mares da Gronelândia por superstições fantasmagóricas e por medo de lá ficarem presos no gelo, tornou-se a primeira embarcação portuguesa a pescar nessa zona.

Por outro lado, em “Antigamente”, surge um capitão sem nome apresentado como «uma peste, uma praga de Deus! Aquilo na era home, era o próprio diabo!…» Tantas fez que, numa das suas últimas viagens, a tripulação revoltou-se. Amarrado, esteve prestes a ser mandado borda fora, mas os revoltosos hesitaram. Em terra, nenhum dos tripulantes fugiu à ira do capitão e, um a um, foram desgraçados. Em alto mar, um pescador contou a Santareno que o dito cujo morreu em Ílhavo «há poucos anos». «Tinha uma nascida ruim, que, palmo a palmo, o foi minando todo… O alma do diabo dava urros que se ouviam lá longe, na estrada de Aveiro! Bem feito, bem feito.» Ato contínuo, um tal Zé da Avó acrescentou que se tratava de «um home mau, um danado», contando ainda que «durante três dias e três noites, antes de ele morrer, os corvos (…) não lhe desampararam a casa (…). Aquele tinha manhas com o demónio, senhor doutor!…»


Bernardo Santareno, o médico escritor

Nascido António Martinho do Rosário, em Marvila, Santarém, em 1920, o heterónimo Bernardo Santareno só surge na década de 1950. Médico formado pela Universidade de Coimbra, foi a bordo do navio “David Melgueiro”, em 1957, que escreveu grande parte de “Nos Mares do Fim do Mundo”. Embarcou ainda no “Senhora do Mar” e no navio-hospital “Gil Eannes” em 1958.

Filho de pai anticlerical e opositor do Estado Novo, Bernardo Santareno ficou no radar da polícia política em 1957, quando a sua peça de teatro “A Promessa” foi retirada de cena após a estreia, face ao escândalo que causa e por pressão da Igreja Católica.

Por entre várias obras, podemos destacar “O Crime de Aldeia Velha” (1959) e “A Traição do Padre Martinho” (1969). A primeira é inspirada num crime ocorrido em 1933, na freguesia de Soalhães, Marco de Canaveses, em que a jovem Arminda foi queimada viva por uma pequena turba que a acusava de estar possuída pelo demónio. A segunda é baseada no Cerco a Lourosa, ocorrido no município de Santa Maria da Feira em 1964, em que o real padre Damião estava em vias de ser transferido pela Igreja, mas o povo mostrou-se contra e um grupo de mulheres montou um sistema de vigias em defesa do sacerdote. A mando de Salazar, centenas de militares da GNR cercaram a localidade e, no processo, foram mortas duas jovens.

Com a PIDE sempre de olho em si, a peça “O Judeu” (uma alegoria à repressão) estreou apenas após a Revolução de 1974.

Homossexual discreto, intelectual de esquerda e afeto ao movimento neorrealista, Bernardo Santareno morreu em 1980, pouco antes de completar 60 anos.


(Publicado originalmente no jornal "O Ilhavense", nº 1358, de 1 de outubro de 2024)

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Stigmata, blood and gasoline

 Assaltámos um banco e vamos pôr o mundo a arder... 

...os dois, juntos.


Sonhei que assaltávamos um banco.

Estávamos de cara tapada com um lenço vermelho como os revolucionários zapatistas. As nossas botas estavam imaculadamente engraxadas. As minhas calças pretas sem um único vinco. As tuas meias semitransparentes que não escondem todas as tatuagens, também pretas, subiam-te pelas pernas saídas do teu vestido curto. A minha camisa, enfiada dentro das calças seguradas por um cinto de couro com fivela prateada, era aquela cinzenta ao xadrez. A tua camisola tinha o nome de uma banda punk. Pus ainda a minha boina quando saímos do carro, e tu não falhaste com o teu longo e solto cabelo negro.

Quando entrámos no edifício atulhado de gente, quis levar tudo à frente, disparar a caçadeira contra tudo e todos, berrar a plenos pulmões, meter medo e impor-me. Mandaste-me um calduço e disseste: «estás parvinho?» Ri, porque imagino-te a fazer isso, e lá fomos roubar.

Saímos dali com sacos de dinheiro ao ombro, sem um único grito e sem um único tiro – e ainda tocámos os lábios numa conversa mais silenciosa, agachados atrás do balcão. Abandonámos cheios de estilo, já sem os lenços na cara, a olhar um para o outro – como um filme, até caminhámos em câmara lenta e ao fundo ouvia-se uma batida sonora que não me era estranha...

Não sei mais. Acordei, esbocei um sorriso e até ri. No meu subconsciente cometemos um crime e soube bem.

Stigmata, blood and gasoline
A thought of you and the fire between

Passado largos minutos, já regressado ao mundo real e à decadência do Oeste, descobri sem querer que aquela batida – a banda-sonora do nosso assalto –, era o acompanhamento destes versos.

Estou a tentar escrever isto o mais natural possível e a tentar encontrar um fio condutor que faça sentido entre nós, o sonho e a música. Está complicado, se calhar devia apagar tudo e esquecer.

Mas porra... Estigma (dito stigmata tem outro impacto, eu sei), sangue, gasolina e fogo... Tudo na mesma frase – como esquecer? E ainda por cima assaltámos um banco!

Pensar que podes ser a minha Bonnie e eu o teu Clyde é tão estúpido quanto bonito e excitante. Só que no fim não somos emboscados e mortos – também não ficamos ricos, mas pelo menos sobrevivemos.

No topo de um dos prédios mais altos de uma das nossas cidades, vimos que incendiámos tudo à nossa volta com rios de gasolina. Não nos importamos, e até gostamos – a paisagem infernal e crepitante é linda e destrutiva. Estou desfeito e a sangrar, levei porrada e um tiro ou outro, mas não me queixo, nem falamos sobre isso – tu estás bem e isso é que importa. Não falamos sobre nada sequer – sentados num parapeito sem grades, só me dás a mão enquanto vislumbramos as gigantescas labaredas a chegar ao mar, enquanto sorrimos a ver arranha-céus a ruir e enquanto não queremos saber da desgraça que acabámos de acometer ao mundo.

As cicatrizes que estas e outras ideias deixam (umas mais verdadeiras e possíveis, outras mais estapafúrdias e insanas) são apenas os estigmas nada religiosos, muito profanos e ímpios que o ofício de imaginar me oferece – e tenho de lidar. Mas não me interessa o apocalipse do mundo e da vida se pudermos continuar a sonhar em roubar bancos e a pôr o mundo a arder – os dois, juntos.

No fim, esteja eu como ou onde estiver, dirás sempre que vai ficar tudo bem. E se houver um dia em que não mo digas, tenho a certeza que aquele teu olhar oculto, que nunca apanho mas conheço, por entre os ombros e as cabeças da multidão à minha procura, vai fazer-te chegar até mim.

E quando nos virmos sozinhos será como se estivéssemos outra vez naquele parapeito alto e perigoso, a ver as cidades a arruinarem-se enquanto sonhamos e não dizemos uma palavra.

Sempre que quiseres voltar a tapar a cara com um lenço vermelho e ir assaltar um banco, serei o primeiro a acompanhar-te. E as manhãs de amanhã serão sempre melhores do que as de ontem.


(08/10/2025)

terça-feira, 30 de setembro de 2025

strepitus mundi

Ter-vos-emos de joelhos perante o barulho do mundo
e as vossas inquietações não serão mais parte de nós.

Habituamo-nos a que o barulho do mundo ribombe quando tudo rui, quando ficamos debaixo dos escombros, quando não há saída e quando as lágrimas são o único sustento. A derrota pode ser romântica, mas nunca gloriosa – e não nos contentemos com isso. Baixar os braços e os ombros, caminhar a olhar para o chão e empalidecer a cada afronta, tudo isso abafa o verdadeiro barulho do mundo.

Ergue-te pois, e quando o fizeres traz alguém contigo, que te acompanha sem medo até ao fim do mundo e que espera por ti nesse fim do mundo quando estiver sozinho, sabendo que será resgatado custe o que custar, demore o que demorar.

Ergue-te pois, e quando o fizeres esmaga os injustos, os incrédulos e os infrutíferos que te vão tentar amarrar correntes aos pés, fazendo com que com eles fiques na penúria e na penumbra porque não sabem mais e recusam saber mais.

E quando te ergueres, então protege e conforta os humildes e os merecidos. Ama-os com todas as forças, abraça-os e beija-os, faz amor com eles se eles forem o teu amor, passa frio e sede, ouve lamentos e esquece os teus, não os abandones por nada, diz a última boa e incentivadora palavra.

E quando te ergueres, então não te esqueças também de dizimar os incautos, os desprezíveis e os egoístas. Odeia-os com todas as forças, encosta-os à parede e rebenta-lhes a cabeça com um martelo, manda-os ao chão e estrangula-os com um cinto de couro, deixa que ouçam as tuas últimas rancorosas palavras, deixa-os a morrer emocionalmente desfeitos.

Invisíveis, treinados para desaparecer sempre que necessário, compomos e afinamos aquele que será o barulho do mundo. Como ladrões a soldo, domamos o fogo, vemos nas sombras e equilibramo-nos na corda bamba. Viajamos suaves e há quem nos ache sonsos, mas mal eles sabem que ainda não temos em nossa posse, por completo, o barulho do mundo e já dançamos ao seu som com os olhos fechados.

Não temas a alegria fundida com ferocidade – é o barulho do mundo a querer brotar. Senta-te comigo, refresca-te nestas margens comigo, aquece-te ao sol comigo, lava-te em leite comigo e terás sempre a minha outra face para beijar e acariciar ou para bateres, cuspires e desdenhar no dia em que já não conseguires fingir que o que te domina é uma incapacitante falta de lucidez. Nesse dia, porque tolerámos que fosse até esse dia, quando perceberem que ofenderam o nosso orgulho e boa-vontade, então vão invejar os mortos, vão desejar não abrir a boca para sussurrar falsos anseios e elogios, e vão pedir mil perdões, todos eles vazios – como se isso fizesse com que a face aberta que foi dada antes pudesse não ter sido dada de todo.

Não te deixes seduzir pelo som das implosões da autocomiseração estagnante e da esbatida promessa – esse não é o estrondo que queres ouvir. A explosão que abrirá caminhos novos e leais, sim, é o barulho do mundo que nos guiará por desertos transformados em prados verdejantes e repletos de frutos. E esse barulho é o do mundo reerguido pelo bom e pelo protetor, mas também capaz de ser intolerante à escapatória, à indecisão, ao desprezível e ao ludibriador.

Enfrentem-nos com modéstia e honestidade, ajuda e pede ajuda, caminha ao lado e nunca à frente ou atrás, decide-te e resolve-te em comunhão com os generosos – e saibam que os bons não são perfeitos, mas mais perto disso chegarão com a humildade da união, e juntos ouvirão o barulho do mundo.

Enfrentem-nos com injustiça e desprovidos de noção, com silêncios ignóbeis que mascaram egoísmo, com arrogância, soberba e com subterfúgios infantis, e perecerão imóveis e abandonados – primeiro esmagados pelos nossos pés enquanto nos erguemos ao som do barulho do mundo que aí em baixo não ouvem e depois com o coração dilacerado por não compreenderem a abnegação que vos quiseram ensinar.

Não se salvam porque não quiseram ser salvos, não se salvam porque não se sabem salvar. Pois que morram – e bem longe de nós, que prosseguimos firmes e coesos.

Ergue-te pois, mais uma e outra vez, quantas vezes forem precisas. Lava a cara, sacode a poeira, abre o peito, vislumbra a estrada sem receio e segue vestido com o fato preto mais radiante e polido, porque isto é apenas o começo do ensurdecedor barulho do mundo: em frente e com vida, os justos e os protetores; para trás moribundos, os desorientados e os incoerentes.

Ter-vos-emos de joelhos perante o barulho do mundo e as vossas inquietações não serão mais parte de nós.


(30/09/2025)

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Finitude

Antes olvidado do que miserável.


É sob os céus cinzentos da ignorância e do egoísmo que decido ir-me embora. A eletricidade citadina apagou-se em mim.

Num canto da cidade, uma árvore plena e verde – tive de a abandonar. A tristeza era esmagadora demais para me manter protegido pela sombra aconchegante daquele ser magnífico que testemunhou indizíveis alegrias.

Sem sombra, de beiral em beiral, com um cigarro incandescente entre os dedos, houve dias em que o sol desceu sobre mim quente e agreste. Voltar à frescura da sombra da árvore viva e verde estava fora de questão. Desaparecer era a única maneira de encontrar alívio.

Merecedor de um bom e bonito fato, vejo-me deitado numa caixa estreita onde caibo perfeitamente. Camisa e colete cor de vinho tinto, casaco e calças negras, sapatos pretos engraxados. Enrolado nas mãos sobre o ventre, um prateado relógio de bolso sem ponteiros. Cabelo rapado, barba aparada com o maior dos cuidados.

No início do outono eu já estava desaparecido. Nunca fui encontrado, o meu corpo nunca foi recuperado... até agora.

Fui enterrado num outro sítio que não o meu – sozinho, sem choros e sem cerimónias.

Enterrado numa cova sem nome e sem lápide, entre monumentos e debaixo das copas de árvores tão lindas e verdes como aquela da minha cidade. Entre estátuas e fontes, uma nova vida sem vida podia começar para mim, neste tão exato dia que marca o fim do velho caminho que percorri.

Será que terei saudades vossas? Será que terão saudades minhas, num tempo e espaço em que já ninguém procura nada e onde não há nada para ser procurado? Quando todos tivermos morrido e ido para o silêncio da eternidade, seremos esquecidos e perdidos nas lembranças da Terra. Antes olvidado do que miserável.

Não passámos juntos os anos que devíamos ter passado.

Esperar por algo que nunca chegaria foi uma escolha minha. Extinguir-me também. Embora o mundo tenha ficado completamente desaustinado, creiam que me fui pacífico e calmo, convosco firmes no meu coração.


(24/09/2025)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O pesadelo do Ser e o eterno inverno da Razão

 Cair, levantar, antecipar, alucinar – repetição.
Ninguém quer saber.


É um horror cerebral pensarmos que não nos lembramos de nada antes de nascermos – nem mesmo dos primeiros anos em que já respiramos e choramos por leite materno enquanto as primeiras cores, agora esquecidas, nos invadem os olhos – e temermos para onde poderemos ir quando cessarmos a nossa existência física. Pois que não tenhamos receio – será igual depois ao que foi antes: oco, vazio, inerte, indolor, nada.

O pesadelo do Ser, pelos jardins do sofrimento, da mágoa e da angústia, é aqui e agora, à medida que envelhecemos com ataques de fúria e ansiedade a funcionarem como uma ignição para um estado de alerta constante que nos enlouquece em noites de insónia tão inebriantes quanto horripilantes.

Aí, envolvidos numa redoma de obsidiana opaca e brilhante, sofremos por antecipação e alucinamos com pensamentos sobre momentos que ainda não aconteceram e que podem muito bem nem vir a acontecer – e não dormimos. E quando adormecemos, atacam-nos sonhos vívidos que nos sufocam deste lado da realidade.

Aí, estamos numa ara de sacrifício instalada no centro de uma caótica cidade isolada, toda ela iluminada por premonições incontroláveis e abjetas que se estendem ao infinito, de pescoço descoberto, prontos a receber o derradeiro golpe que, afinal, não passa de autocomiseração.

É, pois, um encarceramento interdimensional na mesma dimensão – somos um só em vários estados. Depois de encerradas, contra a vontade, as cerimónias do vitimismo, é também aí que invocamos fogo e vingança, sentados num abominável trono feito de agonia autoinfligida. A farsa de imaginarmos que somos adorados e que lideramos é tão profanamente sedutora que achamos que podemos deixar de ser o cordeiro sacrificial para sermos o governo categórico daquela cidade e as suas muralhas intransponíveis.

Absorvidos pela destituição do que é social e sensato, somos – sejamos honestos – uns excitados invisuais a caminhar de pés nus e vestidos de lágrimas e cicatrizes – mas a rir como incautos diabretes. Somos, enfim, a manifestação de um purgatório a nós próprios imposto que se situa no deserto de uma irracionalidade perigosa e com reduzida transparência.

Neste pesadelo do Ser, que vivemos em inestimado júbilo, há fantasmas dentro de nós que nos corroem como cancro, deixando-nos num ininterrupto estado de pré-destruição iminente – o paradoxo da calma com o pânico, ou vice-versa, de que isto só vai doer uma vez. E desvairados ou mais serenos, acordados ou dormentes, há sempre uma necessidade de caça – umas vezes furtiva, outras a céu aberto –, atrás de algo que, em mais ocasiões do que menos, nem sabemos bem do que se trata.

A obsidiana começa a desfazer-se e de dentro dela saímos confusos, mas com manias de assertividade e ponderação que não se materializam, porque são apenas aquilo mesmo: manias. Enfarruscados, sem uma gota de água pura que nos lave, somos como uma pedra de carvão com formas irregulares. Por baixo dessa derme imunda há poros que tentam expulsar segredos, em busca de redenção e leveza. Eventualmente, quebramos essa camada de sujidade para mostrarmos aquilo que realmente somos: carne corrompida e desalmada.

Podia ser um momento de contornos bíblicos, mas não é, desculpem – é apenas corrupção com pernas e braços. Ainda assim, perdidos em pensamentos imprudentes durante noites de olhos abertos na escuridão, deparamo-nos, quiçá sonâmbulos, com um pontinho luminoso que, ironicamente, representa isto: a lógica é apenas uma longínqua contemplação.

Como ruínas, não vivemos – deixamo-nos viver. O pessimismo, o pesadelo do Ser, é – porque achamos que haverá sempre mais um dia para tentarmos o bem e a sua reciprocidade – o último refúgio da esperança.

E assim entramos no eterno inverno da Razão: uma paisagem terrena e carnal de nos próprios, que nos projeta, quer queiramos ou não, a insignificância primordial sobre a nossa condição passageira. Cá dentro, mesmo no centro do peito, está a palpitante presença da morte, um testemunho da nossa futilidade e redundância.

Egoístas, invejosos, mesquinhos, concentrados no nosso âmago, nas nossas ansiedades e tristezas, afogados em álcool, engasgados em medicamentos e falsamente protegidos por impostores sorrisos, colocamo-nos num alto pedestal que diz, na base, “eu sofro mais do que todos”, para cairmos, todos os dias, sempre que subimos ao pedestal, em valas comuns entupidas com cadáveres que têm a nossa cara.

Cair, levantar, antecipar, alucinar – repetição. Ninguém quer saber.

Os cenários provocados pela antecipação – que causam a insónia, o peso no peito, a dificuldade em respirar, os tremeliques nas pálpebras e a vontade de mudar tudo sem estarmos realmente dispostos a tal – preservam a ilusão de que sofremos mais do que os outros.

Enfim, a bonança do eterno inverno da Razão que é isso mesmo: eterno. Não haverá primavera e renascimento, apenas uma enrodilhada existência mundana e passageira que, entre encontros e desencontros, nos encaminha à desejável quietude do que é surdo, intocável e indolor – eis a esperança de conseguirmos viver, sempre inquietos, até lá, pois a vacuidade e a indiferença são irrevogáveis.

Cara a cara num espelho, como se estivéssemos fora do nosso corpo, aceitemos que somos uma porta escancarada, um convite imutável, à serenidade do esquecimento e da morte.


(16/09/2025)

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Da noção: más decisões, ou o colapso

Sem inclinação para pontos de vista racionais,
agora estes fragmentos são a razão destruída
em parcelas destituídas de noção.


Prendo a respiração e vejo o tempo. Um minuto, uma hora, uma madrugada – ainda não aconteceu o colapso. Se ao menos soubesses o que podia fazer por ti – mas, depois da madrugada ainda escura e com o céu enegrecido, quando as primeiras luzes começarem a despontar, eis o colapso. Ainda não o previmos, muito menos o sentimos, porque a respiração está presa e bem presa com a segurança de más decisões que são tão boas, mas ele está lá – vamos ficar sem ar quando o ponteiro bater retumbante no momento em que acordamos dos passos cambaleantes, dos embates contra paredes, das mãos sem regras e das bocas molhadas sem atrito.

Mas antes, avançamos. Ninguém nos vai encontrar, nem nós próprios – é a beleza da respiração sustida e das más decisões. A minha promessa, a mais profunda, é que vai ser tão bom agora que vai acabar por ser mau depois quando nos apercebermos do inevitável lapso – e vai acontecer.

Fiquemos quietos – se ficares sem ar, eu também fico.

O colapso. Aí está! Fiquei aqui demasiado tempo, algo não está certo. O que é isto cá dentro que me desorienta? Não prendi a respiração como me tinha garantido que ia fazer. Um minuto, uma hora, uma madrugada. Depois, o dia, a noção do lapso e o colapso.

Eu sou a evidência de que o teste da respiração falhou. E tu – se o passaste, que bom para ti. Será que o vou poder repetir? Será que vais ler as cartas que te vou mandar? Será que me deixas repetir o teste? Será que depois terei a pontuação certa para passar com distinção?

Para trás, já! Ninguém vai sobreviver a isto. Não te sei dizer como ou porquê, mas é isso que vai acontecer. Dentro de pouco tempo mostrar-me-ei menos e entretanto mudo o nome, desapareço da noite, pois é no escuro que me vês. Será na luz que terei um novo nome, sem respirações presas, sem testes, sem pontuações.

Pouco barulho! Não vou tolerar o som dos teus passos e dos teus ruídos. É no silêncio que me ouço a perdoar. Atrás de mim, só o vazio. Se vais ter saudades minhas? Não sei. Vida longa à dúvida!

O que nos irá substituir? Ou quem nos irá substituir? Que memória vamos ter do tempo que passámos sem respirar? Que a dúvida persista – até que ninguém saberá o nosso nome.

Estou melhor sem isto – sem jogos e sem sensações. Mas ainda estou todo partido, porque o meu verdadeiro nome continua a ser dito e pensado. De alguma forma ainda não saí deste matadouro – que és tu. Mas se achas mesmo que me viste, tem de ser provado que não. São os candeeiros da cidade que te ofuscam a visão, que te fazem ver silhuetas suspeitas – e não sou eu. Juro que não sou eu!

Noutro sítio, onde me martirizo, onde procuro os instintos para saber dizer não, parar e ter o discernimento de que é preferível isto do que sofrer quando já for tarde demais, a chuva cai sobre mim. O som da escuridão vem na minha direção – é uma enorme pintura de cinzento decadente. Tão frágil, foda-se! Estou desfeito em bocados. A chuva limpa-me o corpo e borrata-me a alma. Todo eu sou uma pintura de perda e perdição. Está perto de acabar. É o fim da minha vontade. No meio do escuro, feixes de luz que cega vão amparar a queda. Rio-me, porque é tudo mentira – é um engano. As minhas próprias mentiras bem estendidas mesmo à frente dos meus olhos, do meu espírito desfocado, da pintura decrépita que é a paixão.

As emoções fluem num relance de luz e brilham lá no fundo, envoltas em palavras, memórias e decisões pouco aconselháveis. Vou descendo em queda lenta e livre, enquanto me iludo, à espera que a aterragem seja um novo amanhecer, onde a escuridão realmente se transforme em luz, onde as palavras mal percebidas por causa do eco se tornem finalmente percetíveis. Vou aterrar e a repercussão terá uma radiação tão gigante e turbulenta que o meu amanhecer será vasto e duradouro – sem sons desperdiçados, sem visões esgotadas e sem mentiras que embateram em si mesmas durante demasiado tempo. Tudo acabará de vez.

Fragmentos espalham-se pelo asfalto – é a morte do tempo e do ser. Menos um dia a ser devorado por ti, menos um momento a tentar abster-me do falhanço e da derrota. Disperso, olho para paredes outrora pálidas, agora pintadas de vermelho, e ainda tremo ao pensar na minha existência sem forma, que se deixou levar por testes de respiração – mesmo com o colapso a ser iminente.

Não houve inclinação para pontos de vista racionais, e agora estes fragmentos são a razão destruída em parcelas destituídas de noção. Incapaz de voltar atrás e guerrear com o que quer que fosse para passar o teste, eu sou a expressão do remorso – a morte do tempo e do ser, tudo numa espiral recessiva que rui infinitamente. Uma explosão de cinzento avermelhado.

E é assim que alguém se torna leve e com o amor arrancado de si: reprovando em testes que se sabem não vir a ter êxito, sair disso com a cabeça levantada, mudando o nome e evaporando-se, deixando-se ir por aí abaixo até se estatelar. E depois voltar ao topo, recomeçar. Repetição. Merda para isto!

E se alguma vez leres isto, não faças perguntas às quais talvez não tenha respostas. Isto é a renúncia ao básico real e explicativo, é a aceitação do aleatório, das más decisões e do colapso.


(26/05/2025)

cada vez mais fundo, este é o meu inferno

Os tiranos choram sozinhos
enquanto as picaretas balançam de cima para baixo.


Aqui estou, nu e inadequado, um recipiente de carne destinado a apodrecer como tantos antes de mim e como tantos que ainda estão por vir, para tomar o lugar que hei-de deixar vago. Mas antes, onde quer que estejas, deixa-me oferecer-te o meu amor, se é que ainda podemos fazer algo com isso. Que a terra não me consuma já sem antes ouvires esta súplica. Fui orgulhoso, invejoso, egoísta e vil, e banqueteei-me de tudo com mordaz ganância. Mesmo assim, ofereço-te o meu amor, se é que ainda podemos fazer alguma coisa com isso, onde quer que estejas.

Toda a carne envelhece, e a minha já apodrece antes de realmente ser velho. Começo a ficar negro, as articulações chiam, os ossos por dentro tornam-se areia fina e cada passo magoa.

Estamos vinculados. Um vínculo que se estica pelo espaço e pelo tempo. E mesmo que nunca mais nos encontremos, de certa maneira, pelo que aconteceu, somos um do outro. Andei perdido, andei à procura disto e daquilo, sem saber o que poderia encontrar, e nesses caminhos tortuosos tive visões capazes de me fazer arrancar os olhos, para ficar cego. Mas as imagens não seriam apagadas mesmo que ficasse sem olhos. O fogo selvagem que vi fez com que tudo parecesse condenado, e por isso não adiantava arrancar os olhos e ficar cego.

Nu e a apodrecer, às vezes, por breves momentos, vejo-te e sinto que nada nos pode quebrar. Um osso partido seria somente um pequeno abanão, mas aquele fogo alto, barulhento e doido faz-me estremecer e parece, sem mácula, que tudo está condenado. Dessas chamas que avançam sobre mim, sobre os olhos que não arranquei, sobre a picareta que seguro e que não chega para me defender, elevas-te sem um arranhão em direção a um céu azul muito claro que se vai tornando escuro até te engolir totalmente quando já é noite.

Quando regresso, reparo que à minha volta isto é tudo sobre homens velhos e o que eles vêem quando vão para uma dimensão estranha e horripilante como a minha. Quando acordam, vejo-lhes na cara como estão ansiosos por planear o seu último dia e como se irão daqui com grande classe. Infelizmente, a realidade não lhes permite alcançar o cavalheirismo com que pretendem pôr termo a tudo. Tal como eu, aprisionados, envelhecidos, apodrecidos e arrependidos, não acabarão galantes.

Temos de perceber, aceitar mesmo, que tentar discernir o mundo através de visões que nos invadem quando já estamos moribundos não vai dar-nos aquilo que desejamos. Os tiranos choram sozinhos.

Mais um dia, mais castigo, mais dores. Nus, magros, podres, cheios de feridas, já sem dedos dos pés e sem unhas nos carcomidos dedos das mãos, esburacamos a pedra presa, como nós, à terra compacta. Doridos e ensanguentados, cavamos. Centímetro a centímetro, tentamos ir mais fundo para, quiçá, podermos esconder-nos debaixo do solo como espectros que não se descobrem na luz e que precisam do breu para brilhar. A cada centímetro alcançado, em direção a profundezas negras, ouvimos o chamamento.

Através de poeira e rochas, ouvimos o chamamento por sangue e ossos. E esgravatamos. As nossas almas são compelidas a isso, a irem, encerradas nestes corpos desajeitados e famintos, um bocadinho mais fundo. Tentamos a nossa sorte, à procura de um inferno que, pelo menos, não seja este. Encostamos o ouvido ao solo áspero que nos fere a pele purelenta e ouvimos um rosnado surdo, mas cheio, que faz tremer pedrinhas que rebolam infinitamente. É o chamamento.

Já ultrapassámos as pedras mais bicudas que nos magoam mais do que tudo o resto. Vamos em direção ao cerne, ao núcleo, à promessa de um inferno que, pelo menos, não seja este. Os nossos corações bombeiam loucamente. Estamos às portas da morte. Que bom. Os nossos olhos fixam-se na meta final. Mais um esforço. O rosnado é cada vez mais alarmante, mais próximo. Tudo depende de nós. É o chamamento, a promessa. É sangue e ossos que lá de baixo querem, então é sangue e ossos que terão.

É um feitiço inquebrável o de esgravatarmos um bocadinho mais fundo, por entre pó e pedras, ensanguentados e pútridos. Em frente, para baixo. Pelos nossos feitos menos recomendáveis, aqui vamos, devagar, devagarinho, amaldiçoados a pressionar e a perfurar com frágeis picaretas até ao fundo mais fundo possível. Incansáveis como as abelhas que não vislumbramos há largas temporadas, seguimos como um enxame. Cavamos e cavamos até que finalmente nos perderemos no seio de um inferno, seja ele qual for, mas que pelo menos não seja este. Ninguém ousa olhar para trás, para o que há muito deixámos destruído nas nossas vidas pouco estimadas, nem para cima, para um céu de várias cores que pararam de ser sedutoras. O céu fecha-se mais um pouco sempre que conseguimos ir mais fundo.

É tudo mentira. Não há outro inferno que não este.

Mais um dia, mais castigo, mais dores. Somos como Sísifo.

O sol queima-me a pele enquanto as costas doem excruciantemente sempre que a picareta balança de cima para baixo. Os buracos nas pedras e no solo rígido são cada vez mais, mas não saio do mesmo sítio. Há sempre mais pedras para rachar, nascem como parasitas incontroláveis. As horas custam a passar até que o sol se põe neste inferno que queria que fosse outro.

Mais uma manhã, mais um dia difícil. A rispidez do tempo e dos rochedos corroem-me o corpo. A loucura de querer sair daqui é tanta que, escavando à procura de outro lugar, me faz atirar a picareta para longe e revolver a terra bruta com as próprias mãos. É sangue e ossos que querem, é isso que vão ter. Pacientemente os terão. Dizem que isto é um inferno, mas é o meu inferno.

Os abutres voam rente ao meu pescoço. Sem pressa aguardam que o meu corpo caia uma última vez e que continue a apodrecer inanimado. Mas ainda não é hora para o festim.

Perfuro um pouco mais fundo. Dos lábios secos, esbranquiçados pela poeira que se torna lama na boca, escapa-me uma praga quando me lembro do momento em que coloquei as balas no revólver. Uma, duas, três orações sabe-se lá a quê e um tiro. À distância ouvem-se sinos que vão desmaiando comigo. Era um inferno, era o meu inferno.

O pó não assenta, o vento é devastador. Os abutres desaparecem e, com eles, os meus vestígios. Apenas um permanece. Fica para trás uma velha picareta com o cabo partido e nele escrevinhado um nome ilegível, como um fantasma do passado.

Mas volto, voltarei sempre a este inferno. O corpo nu e a apodrecer, as visões de fogo, o amor perdido que se transcende aos céus e eu cá em baixo a vê-lo partir, o chamamento, o rosnado, a promessa de outro sítio que não este e que deverá estar um bocado mais ao fundo, por baixo de mais uma rocha, no escuro onde posso brilhar novamente. Volto sempre, de picareta na mão gretada. Mais um dia, mais castigo, mais dores. Poderão dizer que isto é um inferno, mas é o meu inferno.


(15/05/2025)

as ondas que teimam em trazer-me de volta

Estou velho. Nem sei se estou cansado do corpo ou da vida. Os meus cabelos são brancos e raros, as minhas pernas custam a mexer e os joelhos chiam como dobradiças enguiçadas, os meus braços tornaram-se finos como palitos, as minhas mãos são o dobro do tamanho do que deviam ser, cheias de calos nos dedos e nas palmas, as unhas crescem grossas mas acabam por se partir como palha seca. A minha respiração é calma, mas está longe de me trazer serenidade. Custa-me ter os olhos abertos, mas quando os fecho vejo coisas que não quero recordar. A visão romântica do mar e nele navegar é uma mentira. É uma prisão, uma desgraceira, uma imundice, uma incerteza. A minha pele é tão rija, tão áspera e tão adusta que não há sol que me faça mais enegrecido. Mas não é só por fora que estou chamuscado.

Estou tão velho e tão cansado. Mereço descansar. Enfrentei ventos selvagens e nevoeiros espessos como nunca sentirão em terra firme, e convivi com homens desajustados, ignorantes, brutos. Pergunto-me como sobrevivi durante tanto tempo. Combati ondas gigantes que me queriam engolir, sugar e desfazer, mas foram sempre essas ondas traiçoeiras que me trouxeram de volta. E sempre que tentei deixar-me ir, regressei. Pergunto-me porquê.

Vi ir embora quem talvez merecesse menos do que eu. Como naquele dia em que um marujo ainda muito verde foi pela primeira vez arreado à água, no seu pequeno dóri. Maldito dia, o mar não estava para brincadeiras e para pouca experiência. Mas ele lá tinha de ir. O homem responsável pelo rapazito estava muito doente, a ferver em febres alucinantes no seu beliche. Era um homem tão grande e forte que o cubículo onde dormia era pequeno demais para tamanho porte. A doença derreteu-o em poucos dias, sem nunca saber o que tinha ocorrido lá fora, na labuta ingrata. E lá tinha de ir o receoso protegido na sua vez, naquele dia em que o mar rugia, ferozmente suplicante, por oferendas. Já me esqueci do nome do moço e também não o quero lembrar, mesmo que fosse capaz. Tão verde e imaturo, uma pena. São estas coisas que vejo quando fecho os olhos. Também fui descido ao mar nessa hora matutina. Não havia ponta de sol, era uma noite de dia, as nuvens estavam cinzentas e carregadas, o mar compacto batia nos nossos botes e desintegrava-se em gotas que nos feriam a cara, como minúsculas pedras aguçadas. Tentei abeirar-me o máximo que podia do infeliz, mas nada a fazer contra correntes e vagas com uma vontade tão própria e singular que nunca iremos compreender. Cada pescador foi levado para onde não pretendia. Era um dia de sorte ou de azar, não havia talento que prevalecesse. Também eu fui arrastado para outras bandas, afastado do moço. Ao longe via as ondas a crescer. Eram escuras, mais escuras do que as nuvens que tapavam o firmamento, e no cume uma espuma branca e espessa coroava o marchar da morte. Cada vaga daquelas trazia um carimbo de mortandade, um selo invisível que vinha já a marcar o seu destinatário, só não sabíamos qual de nós seria virado e engolido. Nunca deveríamos ter ido ao mar naquele dia, mas o porão estava tão vazio que o capitão preferiu a sua honra e a do armador em terra descansado do que a vida dos seus homens. Não foi preciso muito tempo até o alarme soar para que regressássemos. Foi tudo tão rápido que nenhum homem tinha lançado sequer a linha à água, mas foi o suficiente para o desastre acontecer. O verde marujo foi levado para longe de mim, de nós. Os mais fortes e experientes remaram contra tudo o que se lhes opunha, e, por entre façanhas e atos de puro instinto de sobrevivência, por entre crenças e derradeira expiação de pecados, todos os veteranos, eu incluído, se acercaram do navio-mãe. Todos menos o moço. As ondas que me trouxeram de volta foram as mesmas que, ao separarem-se de mim, se viraram para ir de encontro ao rapaz que mais não regressaria. Metro a metro, ora o víamos na crista de uma vaga, ora o perdíamos da visão quando se formava um vale líquido entre as ondas revoltadas, como colinas. Gritámos para que remasse. Gritámos sem parar, mesmo sabendo que não nos ouviria, pois já estava no centro da tempestade, mas continuámos a chamar por ele, por um nome que esqueci. Até que a maior onda que alguma vez vi se ergueu de rompante em direção ao céu e desceu impactante contra o desgraçado que nem um bacalhau teve a felicidade de pescar, virando-lhe o dóri, destruindo-lhe a madeira do casco e dos remos, esmagando-o como se duas paredes se fechassem uma na outra. As ondas que me trazem de volta são aquelas que levam outros para uma eternidade que ainda desconheço. E é por isso que nunca quero fechar os olhos, por mais que me custe, porque são estas as coisas que vejo. Dizia-se que tinha deixado uma namoradinha em terra, à sua espera. Ouvi-o uma vez dizer que se ia casar em breve e encher a casa de filhos para ser feliz sempre que regressasse. Nem uma carta escreveu, porque não sabia escrever e não queria que escrevessem por ele, mas tinha sonhos. Tão ingénuo. Hoje está com o mar, e os filhos que não deixou são a sua solitária companhia para sempre. E quando não fecho os olhos, pois não quero rever todas estas coisas, é o som do mar, porque nunca saí de perto dele, que teima em trazer de volta estas memórias.

Sempre que peço para ir-me daqui, deste plano feito de areia ou de chão firme que nunca balança, as ondas que teimam em fazer-me regressar trazem ao pensamento outro homem do qual o nome também já se me esfumou. Este escravo da água salgada também tinha sonhos, mas não eram desejos, eram imagens em movimento que o subconsciente produzia enquanto passava pelo sono nas poucas horas que podia dormir. E é de um sonho muito particular que se trata esta recordação. Quando fecho os olhos de cansaço, imagino aquele sonho que ele nos tinha contado certa manhã antes de sermos arreados ao manto de água. Contou-nos então que tinha acordado muito sereno por causa do sonho que teve, uma perceção muito vívida de que caminhava livremente no fundo do mar ao lado dos dois filhos. Disse-o com uma tranquilidade tão pura como nunca lhe tínhamos visto ou ouvido. E foi tão estranho vindo de um homem efusivamente aguerrido e pouco dado a sentimentos. Nunca falava dos filhos, nem da terra que o viu nascer, da qual eu nunca soube qual era. Remava como ninguém, era quem ia para mais longe, e a sua voz era, por vezes, mais altiva do que o assobio cortante de ventos que aterrorizam. Vimo-lo, certa vez, a erguer-se no seu dóri, de braços abertos, virado para uma onda que se formava contra ele. Desafiou os deuses do mar e venceu. Aquela vaga, que iria atingir uma altura tenebrosa, tão depressa se esticou ao alto como desvaneceu perante tal espetáculo de um só homem contra a natureza. No regresso ao navio-mãe, o excelente pescador e remador ria com desdém, sem medo, mostrando aos outros como se fazia, como se combatia o incombatível. Mas naquela manhã, quando nos contou o sonho, toda aquela casca rija se tinha tornado numa fina camada de manteiga derretida. Era dia de mar calmo, uma planície autêntica, nem uma nuvem se vislumbrava, a pescaria seria boa. Fomos arreados, cada um na sua vez e a soltar vivas uns aos outros sobre um dia que iria ser de grande sucesso. Passado um par de horas, um repentino e denso nevoeiro assolou aquele banco de pesca. O mar continuou manso, mas a neblina era tão cerrada que não se via um palmo à frente dos olhos. A ronca do navio soou imediatamente e todos regressámos conforme pudemos, através do instinto mais básico da audição. Todos, menos o homem mais bravo que alguma vez vira. Não sabemos como, nem porquê, nem por quem, mas foi abocanhado pelo nevoeiro. Desapareceu sem deixar rasto, nem o seu búzio se ouviu, se é que fez uso dele. À medida que nos íamos aproximando do som da ronca, o nevoeiro foi levantando e ali estávamos todos, devolvidos à ténue segurança do navio-mãe, por ondas que teimam em trazer-me de volta. Todos menos aquela alma dura em corpo ainda mais duro. Nem homem, nem bote. Nada. E quando fecho os olhos, vejo-o a caminhar livremente no fundo do mar com os dois filhos. Passado dois dias, atracámos numa pequena povoação portuária e havia um telegrama endereçado ao desaparecido. Leu-nos o capitão sobre os dois filhos do sonhador. Tinham morrido tuberculosos. O mar lá sabe o que faz, tanto sobre os que leva como sobre os que faz regressar, como eu, que não consigo ser mais teimoso do que as ondas que me trazem sempre de volta.

Estou exausto, mas as ondas que insistiram em trazer-me de volta continuam a trazer-me também lembranças. Gostava de me recordar de quentes momentos de paz e despreocupação, mas o baque dessas ondas é tão retumbante que é impossível fugir a memórias de desventura. Quando fecho os olhos no preciso instante em que uma onda rebenta, relembro um desalmado caído em desgraça. Também já não me lembro do seu verdadeiro nome, só das palavras maldosas com que o tratavam. Ora era o cornudo porque se dizia que a mulher se deleitava de prazeres com outros homens em terra enquanto este sofria e mal suportava as escoriações interiores e exteriores da faina, ora era o manco porque, certa ocasião, ficou com uma perna horrivelmente presa entre o remo e a borda do dóri, ora era o tolinho porque falava sozinho e nada do que dizia se percebia. Tinha-se tornado numa sombra desbotada do homem robusto, digno e decisivo que tinha sido noutros tempos. Era penoso vê-lo regressar com pouca pescaria, era doloroso ouvir o que diziam dele, tanto na sua frente como, pior ainda, nas suas costas. É incrivelmente triste ver o que o mar é capaz de fazer a alguns homens, tanto os que se tornam vis e mesquinhos seres como os que agoniam com isso. Gozado por quase todos, o seu olhar de viés perante o que ouvia foi-se tornando cada vez mais ominoso e as palavras que dizia baixinho para si mesmo eram cada vez mais impercetíveis. As ondas que me traziam de volta, com o bote cheio, a transbordar de bacalhau, eram as mesmas ondas que o faziam regressar a ver-se o fundo da sua minúscula embarcação, sem quase nenhum peixe. Ainda hoje não aguento tamanha pena, mesmo tão velho e distante daqueles dias. A minha velhice e cansaço em nada amainam esse sentimento. Havia de ser deixado em terra, em qualquer porto, deixado à sua sorte, longe de casa, porque para a faina já não servia, era o que se dizia na sua cara nas poucas horas de convívio enquanto se comia e bebia o que dava para comer e beber antes de se dormir o pouco que dava para dormir. Num dia de mar bravo e de chuva copiosa, as ondas trouxeram-me de volta com uma considerável pescaria dadas as circunstâncias, ao contrário do desafortunado, sem um único bacalhau. Estava mais do que visto que tal ia acontecer, fosse mais tarde ou fosse mais cedo, calhou ser naquele dia. O desalentado foi alvo do maior gozo de sempre, mas, por entre todas as maledicências, havia dois tripulantes, com nomes que não interessam por causa de conspurcarem a honra humana diariamente, que ultrapassavam todos os limites, para lá de cornudo, manco ou tolinho. O desorientado, a ouvir aquilo tudo, depois de horas a fio no mar, isolado no seu dóri, a mandar linha e anzol atrás de linha e anzol e a nada tirar do fundo daquelas geladas águas, armado com uma longa e afiada faca de escalar, atirou-se a um dos seus rivais sem que este estivesse à espera. Lembro-me bem, porque as ondas continuam a trazer-me de volta todos os segundos passados naquela horrível vida, quando aquele homem, agora magro, a definhar, se lançou às costas do inimigo, desferindo-lhe um golpe profundo na garganta. O outro maldizente, mesmo ao lado, agarrou o esfaqueador, empurrou-o para o chão e, no meio da confusão instalada, por entre pés e braços que depressa se misturaram para acabar com o incidente, tropeçou, caindo em cima do corpo do adversário. Enquanto o ferido estrebuchava no chão do convés, a revirar os olhos e a jorrar sangue negro pelo lado direito da garganta, como quem diz, a dar as últimas, o companheiro, que o defendeu tarde demais, batia, com pesados murros, no atacante, mas cada vez menos, com menor preponderância e energia. Enquanto todos os outros marinheiros debatiam sem se perceber nada e quase se agrediam, ou outros que se abeiravam do esfaqueado, enquanto o capitão mirava de cima, desde a casa do leme, enquanto tudo e mais alguma coisa que se reaviva em mim através das ondas que batem na areia e me trazem tudo de volta, a força daqueles murros tornou-se nula. É que o gozão não só caiu em cima do desastrado a quem chamavam cornudo, manco e tolo, como também caiu, de peito aberto, na ponta aguçada da faca que se enterrou em si. Foi nesse preciso momento que o capitão e o seu imediato acabaram com a bagunça através gritos de ordem e arremesso de corpos enfurecidos com olhos esbugalhados de lágrimas raivosas e com ânsias de voltar a casa. E foi também aí que percebi, como tão bem recordo quando fecho os olhos, que aquele desafortunado homem tinha assassinado os seus dois constantes perseguidores quando esforçadamente saiu debaixo daquele peso viril. Nas mãos já não tinha a faca, nas mãos tinha o sangue de dois outrora companheiros de todas as horas. Tentou limpar essas mesmas mãos, que tantas linhas e anzóis lançou ao mar, à sua camisola preta e grossa de gola alta, mas aquele líquido espesso e vermelho não se descolou da pele. Desorientado, a chorar e a pedir perdão, todos os tripulantes o olharam com perplexidade. Rodeado por homens que se estavam a transformar em animais irracionais, foi pé ante pé, para trás, que devagar se aproximou dos limites do navio para num ápice de desespero se mandar a si próprio borda fora. Aquelas ondas, que se obstinam a trazer-me de volta, levaram consigo, para intermináveis fundos, um desgostoso miserável que me aparece na memória sempre que, contra a vontade, fecho os olhos de cansaço.

Não sei a minha idade, só sei que estou velho e cansado. Se calhar tenho trezentos anos e trezentas mil ondas teimaram em trazer-me de volta. Não sei como e por que é que sobrevivi tantas vezes e tantos anos. Pergunto-me porquê. Há quem diga que sou um sábio, mas renego. Julgo até ser tão desajustado, ignorante e bruto como os outros. O engenho de marujo perseverante já não está em mim, apenas acerto aqui e ali nas horas consoante a posição do sol, sei dizer o nome de um ou outro astro e pouco mais. Estou velho e cansado, e simplesmente não me deixam ir embora. Sim, as ondas, essas mesmo. Se calhar ando há duzentos anos a contar as mesmas histórias que quero esquecer e não sou capaz, porque é quando fecho os olhos para morrer que elas se reavivam com mordaz afinco, e, assim, duzentas mil ondas teimam em trazer-me de volta sempre que me lanço ao mar, que é, enfim, a minha verdadeira casa.


(05/03/2025)

Não sei se consigo voltar para casa...

uma chamada telefónica durante a madrugada


Quatro e doze da madrugada. Toca o telemóvel. Ela acorda confusa, a pensar que já seria de manhã, que é o despertador. Mas aquele som não é o toque do despertador, é mesmo uma chamada. Enquanto pega no telemóvel, que está em cima da mesinha de cabeceira, estica o outro braço para o lado oposto e percebe que está sozinha na cama. No ecrã do telemóvel, que lhe ilumina a face estremunhada, vê que quem lhe liga é o namorado. Atende, e fala com voz de muito sono: «Estou...» Os primeiros sons que lhe chegam ao ouvido são ruidosos, como um formigueiro da televisão. «Estou...?», repete. «Não sei se...», diz-lhe do outro lado, com a frase a ser cortada por ruídos a fritar a ligação.

«Não sei se... consigo voltar para casa», acaba ele por dizer.

«Onde estás? São...», tira o telemóvel da orelha para ver as horas, «...quatro e tal da manhã.»

«Não sei... E não sei se consigo voltar para casa...» A voz dele, por entre cortes, transmite calma. Ela sabe que ele é assim, que se comporta tranquilamente nos momentos mais complicados – algo não está bem.

«Como assim, não sabes onde estás? Estás sozinho? Mal te ouço...»

«Estou a conduzir, está a chover muito, pouco ou nada consigo ver da estrada. O GPS não funciona, o pára-brisas está sempre a encravar, o rádio só dá um apito sem interrupção.»

«Mas onde raio te foste meter? Disseste que ias passar em casa dos teus pais, que nos tinham feito bacalhau com natas para almoçarmos amanhã, e que depois ias beber um copo rápido com o pessoal. São quatro e tal da manhã!»

«Não sei onde estou!»

«Estás bêbado?»

«Não! Bebi duas cervejas.»

«Estás a meter-me medo! E isto não são horas para estas brincadeiras! Vem para casa!»

«Não sei mesmo onde estou! E não sei se consigo voltar para casa...»

Palavras ininteligíveis, estampidos, picadas como se pedrinhas estivessem a bater em vidros. «Pára o carro, não continues se não sabes por onde estás a ir. Por favor!»

«Parece que estou a andar às voltas, as árvores são sempre iguais, já vi a mesma paragem de autocarro não sei quantas vezes, dou com vários cruzamentos, e, do pouco que vejo, os sinais só me permitem virar sempre para o mesmo lado. Chove mesmo muito, está tanto vento que me abana o carro e está escuro! Nunca vi esta estrada.»

Bem acordada e alarmada, repara que, lá de fora, não se ouve um pingo de chuva. «Só podes estar a gozar comigo! Não está a chover! Estamos no pico do verão. Pára com a brincadeira, estás bêbado! Tu não és assim! O que é que te deu hoje? Vem para casa!»

«Não sei se consigo...»

«Amor, pára...» E começa a chorar.

«Desculpa. Não estou a brincar, estou mesmo perdido.»

«Não passa por aí ninguém?» Silêncio. Sons estrépitos. Silêncio. Mais sons irregulares. «Estou!?»

«Estou sozinho. Estou sozinho e perdido!», grita. «Não sei se consigo voltar para casa!», grita com mais agonia, enquanto se ouvem batidas, murros, que ela julga serem do namorado a bater no volante.

«Calma! Calma, amor, por favor...», pede ela, a chorar cada vez mais.

«Nunca pensei que fosse acabar assim, perdido, sem conseguir voltar para casa.»

«Tu vais voltar! Estejas onde estiveres, vai parar de chover. Não conduzas mais, aguenta mais um par de horas, vai amanhecer, vais saber onde estás e vais voltar.»

«Não sei se consigo...», a calma dele já era apatia, resignação.

«Olha, começou a chover aqui também. Não deves estar longe. Acalma-te. Vamos acalmar-nos...», pediu, agora sem lágrimas e com carinho. Voltou a esticar o braço para o lado oposto e vazio da cama. Apertou o lençol, enrodilhando-o na mão.

Deixou de o ouvir. Até que...

«Já me fiz à estrada outra vez. Tenho de encontrar um caminho. Caraças, não há-de ser assim tão difícil! Mas nunca estive aqui.»

«Não, não! Pára o carro!»

«Mas eu quero ir para casa! Só não sei se consigo...»

«Eu também quero que venhas. Passei o dia com tantas saudades tuas, tão angustiada. Tenho tantas saudades tuas!»

«Tenho sempre saudades tuas. Terei sempre saudades tuas... Nunca te vou esquecer. Nunca me esqueças.»

«O quê? O que é que isso quer dizer?»

«Amo-te.»

«Amor...?»

«Desde o primeiro dia, quando te disse para leres aquele livro, naquela livraria...»

«Pára! Pára com isso! Acabou a brincadeira, por favor!»

«Não consigo voltar para casa... Desculpa.»

«Volta!»

«Amo-te.»

«Eu também, eu também! Mas volta!»

«Não consigo...»

«Não faças isso!»

«Não quero fazer. Simplesmente não consigo deixar de estar perdido. E está tudo bem.»

«Não, não está!»

«Pois não... Tens razão! Quero muito voltar, mas desculpa, não vou conseguir...»

«Anda para casa! Vem para ao pé de mim!»

Do outro lado, um respirar abafado, como que a perder o ar, a arfar com aflição e ânsia, mas, paradoxalmente, sem descontrolo. Ele ia falando, baixinho, impercetível, a falar consigo mesmo, ela não percebia nada. Os ruídos elétricos misturavam-se com ventanias e pingos grossos.

«Não consigo...»

A chamada caiu.

E ela acordou. «Era um pesadelo...» Estava com frio. Tinha um pé, descalço e desprotegido, fora da cama. Estava baralhada. «Sim, foi só um pesadelo.» Pegou no telemóvel, que lhe iluminou a cara no meio da escuridão. Quatro e doze da manhã. «Ainda tenho mais umas horinhas para dormir...» Pousou o telemóvel na mesinha de cabeceira, voltou a meter o pé debaixo do lençol, virou-se para o outro lado e sorriu enquanto abraçou o namorado. O corpo dele estava rijo e arrefecido, e não reagiu como sempre fazia quando ela o abraçava durante a noite, para se aconchegarem.

Passou-lhe a mão pela cara, suavemente. «Amor...» Abanou-o, levemente. «Amor?» Puxou o seu corpo pesado contra si. «AMOR!?»

Não conseguiu regressar.


(09/02/2025)

A carta que nunca vais ler

Quantas e quantos de nós quisemos dizer o que está aqui e não dissemos?
Ou dissemos e rebentámo-nos em pedaços?
É uma carta de amor. Usa-a: fica com ela para ti ou dá-la a alguém.

Esta é a carta que nunca vais ler, porque nunca ta vou enviar, mas vai ser partilhada por aí e mesmo assim não a vais ler. E como não a vais ler, também não saberás que é para ti.

A ingenuidade das primeiras tímidas palavras e o ocultar dos primeiros olhares cruzados, sempre a pensarmos que o outro não percebia, criaram uma fatuidade aparentemente ilógica – isto não estava a acontecer, não podia acontecer e não ia acontecer.

Cheguei a aquecer por dentro e depois a gelar também. Acabaram-se os tempos dos impulsos, das palavras desmedidas, das emoções repentinas e sem filtro. Ganha razão, tem de ganhar a razão. Mas nem sempre foi assim. Voltei a aquecer. O gelo regressou depois. E aqueci novamente. E o meu âmago é uma crise climática constante – todo alterado e adolescente, que, a muito custo, tende a assentar e a ser um adulto racional.

A nossa sorte é que nunca houve promessas, sempre com medo dos estilhaços que nos cortariam os pés se alguns compromissos, inicialmente cheios de empenho, fossem quebrados. Rimos muito, dissemos parvoíces, apanhámos bebedeiras e até tentámos debater filosofia – o que é o estoicismo, o pessimismo e o que somos e andamos a fazer afinal connosco e com os outros nesta curta, preciosa e tão feliz quanto sofredora passagem por este planeta. Somos assim tão únicos no infinito do Universo? Não haverá mais vida complexa na vastidão de milhões e milhões de galáxias? E será que somos assim tão únicos, por cá, que não há mais ninguém por quem nos apaixonarmos?

Vou falar, não vou falar. Vou convidar, não vou convidar. Vou admitir, não vou admitir. O tempo é a resposta: para apagar ou para acicatar ainda mais irresponsavelmente. Quis limpar essa lousa, em que tinha escrito pensamentos, sentimentos e resoluções, e consegui – não durante muito tempo. Ri contigo, ao teu lado ou à distância, enquanto me doía não dizer o que queria – por medo, por respeito, por querer defender a inocência dos risos e das piadas, até dos olhares.

Batemos numa parede quando admitimos, e essa parede ruiu comigo, por uma ribanceira. Não ponderei as minhas hipóteses, aceitei a queda – e lá fui eu por ali abaixo, ao rebolão. E os ossos não seriam o maior problema. A alma é que se partiu toda. Mas também não vamos ser melodramáticos ao ponto de encenarmos uma peça de teatro regada por lágrimas falsas e gritos desesperados que não são mais do que profícua atuação. Isto era só paixão – mas porque não pensar em amor? Não agora, mas depois, talvez um dia destes, pé ante pé, com os mesmos risos, parvoíces, debates filosóficos sobre a música, os filmes, os genocídios e a própria vida, mas com beijos à fugida, apalpões firmes e noites passadas na mesma cama. E se dá merda? Nunca saberemos. Nem estás a ler isto sequer, portanto não importa.

Admitimos, primeiro respirei de alívio e depois, quando acordei, dei por mim espatifado contra um poste de eletricidade que aguenta, intacto, o maior dos camiões – não vai dar, sabemos que é melhor nem irmos por aí. Admitimos, mordemos a língua e vamos sufocar com o nosso próprio sangue. Não é o que te desejo, calma. Mas é o que nos aconteceu. Nem há choradeira, e esse sangue também é só uma metáfora – afinal isto é só uma carta de amor que nunca vais ler, não é um conto de terror sanguinolento.

Se calhar íamos prometer rosas e ficaríamos, pouco depois, com os espinhos cravados nas pontas dos dedos, nas palmas das mãos, nos pescoços, nos lábios, até nos olhos caso nem nos pudéssemos ver à frente. Às tantas íamos achar que conseguiríamos viajar por vários sistemas solares, em movimento de translação à volta de diversos sóis que éramos realmente nós próprios, mas se calhar nunca iríamos sair deste plano terrestre e o primeiro passo dado seria para pisar uma mina e outra e outra, até não haver mais carne e espírito para se ver a despedaçar no ar e a cair desfeito, aos bocados, no chão.

Houve dias em que achei que encaixávamos como puzzles – senti esse fascínio utópico. Mas isso já não é estar-se apaixonado? Não quero. Mas houve desses dias – e alegrei-me, renasci momentaneamente, imaginei cenários, obtive coragem. Só que aterrei, enfim, com o peso da razão que é tão forte como a gravidade. Lá se foram os sistemas solares, as galáxias, os beijos e o arrebatamento, mas ao mesmo tempo também desapareceram as minas e as explosões que nos iam destruir a simplicidade de podermos continuar a ver-nos e a falarmos sem rancor – talvez com alguma tristeza ou passageira relutância, mas nunca com aversão.

Os dias passam e a sagacidade da paixão murcha. E está tudo bem. Tem de estar tudo bem. E não quero voltar a sentir frio na barriga, nem quero ficar com o teu cheiro na minha camisola quando me dás um abraço acompanhado de um sorriso lindo.

E o pior de tudo é que mesmo assim, decididos a não tentarmos nada em nome da paixão, da tesão ou mesmo do amor (porque não?), estilhacei-me como vidro frágil. Acho que vou sangrar mais do que tu. Silêncio.


(31/12/2024)