quarta-feira, 28 de maio de 2025

Da noção: más decisões, ou o colapso

Sem inclinação para pontos de vista racionais,
agora estes fragmentos são a razão destruída
em parcelas destituídas de noção.


Prendo a respiração e vejo o tempo. Um minuto, uma hora, uma madrugada – ainda não aconteceu o colapso. Se ao menos soubesses o que podia fazer por ti – mas, depois da madrugada ainda escura e com o céu enegrecido, quando as primeiras luzes começarem a despontar, eis o colapso. Ainda não o previmos, muito menos o sentimos, porque a respiração está presa e bem presa com a segurança de más decisões que são tão boas, mas ele está lá – vamos ficar sem ar quando o ponteiro bater retumbante no momento em que acordamos dos passos cambaleantes, dos embates contra paredes, das mãos sem regras e das bocas molhadas sem atrito.

Mas antes, avançamos. Ninguém nos vai encontrar, nem nós próprios – é a beleza da respiração sustida e das más decisões. A minha promessa, a mais profunda, é que vai ser tão bom agora que vai acabar por ser mau depois quando nos apercebermos do inevitável lapso – e vai acontecer.

Fiquemos quietos – se ficares sem ar, eu também fico.

O colapso. Aí está! Fiquei aqui demasiado tempo, algo não está certo. O que é isto cá dentro que me desorienta? Não prendi a respiração como me tinha garantido que ia fazer. Um minuto, uma hora, uma madrugada. Depois, o dia, a noção do lapso e o colapso.

Eu sou a evidência de que o teste da respiração falhou. E tu – se o passaste, que bom para ti. Será que o vou poder repetir? Será que vais ler as cartas que te vou mandar? Será que me deixas repetir o teste? Será que depois terei a pontuação certa para passar com distinção?

Para trás, já! Ninguém vai sobreviver a isto. Não te sei dizer como ou porquê, mas é isso que vai acontecer. Dentro de pouco tempo mostrar-me-ei menos e entretanto mudo o nome, desapareço da noite, pois é no escuro que me vês. Será na luz que terei um novo nome, sem respirações presas, sem testes, sem pontuações.

Pouco barulho! Não vou tolerar o som dos teus passos e dos teus ruídos. É no silêncio que me ouço a perdoar. Atrás de mim, só o vazio. Se vais ter saudades minhas? Não sei. Vida longa à dúvida!

O que nos irá substituir? Ou quem nos irá substituir? Que memória vamos ter do tempo que passámos sem respirar? Que a dúvida persista – até que ninguém saberá o nosso nome.

Estou melhor sem isto – sem jogos e sem sensações. Mas ainda estou todo partido, porque o meu verdadeiro nome continua a ser dito e pensado. De alguma forma ainda não saí deste matadouro – que és tu. Mas se achas mesmo que me viste, tem de ser provado que não. São os candeeiros da cidade que te ofuscam a visão, que te fazem ver silhuetas suspeitas – e não sou eu. Juro que não sou eu!

Noutro sítio, onde me martirizo, onde procuro os instintos para saber dizer não, parar e ter o discernimento de que é preferível isto do que sofrer quando já for tarde demais, a chuva cai sobre mim. O som da escuridão vem na minha direção – é uma enorme pintura de cinzento decadente. Tão frágil, foda-se! Estou desfeito em bocados. A chuva limpa-me o corpo e borrata-me a alma. Todo eu sou uma pintura de perda e perdição. Está perto de acabar. É o fim da minha vontade. No meio do escuro, feixes de luz que cega vão amparar a queda. Rio-me, porque é tudo mentira – é um engano. As minhas próprias mentiras bem estendidas mesmo à frente dos meus olhos, do meu espírito desfocado, da pintura decrépita que é a paixão.

As emoções fluem num relance de luz e brilham lá no fundo, envoltas em palavras, memórias e decisões pouco aconselháveis. Vou descendo em queda lenta e livre, enquanto me iludo, à espera que a aterragem seja um novo amanhecer, onde a escuridão realmente se transforme em luz, onde as palavras mal percebidas por causa do eco se tornem finalmente percetíveis. Vou aterrar e a repercussão terá uma radiação tão gigante e turbulenta que o meu amanhecer será vasto e duradouro – sem sons desperdiçados, sem visões esgotadas e sem mentiras que embateram em si mesmas durante demasiado tempo. Tudo acabará de vez.

Fragmentos espalham-se pelo asfalto – é a morte do tempo e do ser. Menos um dia a ser devorado por ti, menos um momento a tentar abster-me do falhanço e da derrota. Disperso, olho para paredes outrora pálidas, agora pintadas de vermelho, e ainda tremo ao pensar na minha existência sem forma, que se deixou levar por testes de respiração – mesmo com o colapso a ser iminente.

Não houve inclinação para pontos de vista racionais, e agora estes fragmentos são a razão destruída em parcelas destituídas de noção. Incapaz de voltar atrás e guerrear com o que quer que fosse para passar o teste, eu sou a expressão do remorso – a morte do tempo e do ser, tudo numa espiral recessiva que rui infinitamente. Uma explosão de cinzento avermelhado.

E é assim que alguém se torna leve e com o amor arrancado de si: reprovando em testes que se sabem não vir a ter êxito, sair disso com a cabeça levantada, mudando o nome e evaporando-se, deixando-se ir por aí abaixo até se estatelar. E depois voltar ao topo, recomeçar. Repetição. Merda para isto!

E se alguma vez leres isto, não faças perguntas às quais talvez não tenha respostas. Isto é a renúncia ao básico real e explicativo, é a aceitação do aleatório, das más decisões e do colapso.


(26/05/2025)

cada vez mais fundo, este é o meu inferno

Os tiranos choram sozinhos
enquanto as picaretas balançam de cima para baixo.


Aqui estou, nu e inadequado, um recipiente de carne destinado a apodrecer como tantos antes de mim e como tantos que ainda estão por vir, para tomar o lugar que hei-de deixar vago. Mas antes, onde quer que estejas, deixa-me oferecer-te o meu amor, se é que ainda podemos fazer algo com isso. Que a terra não me consuma já sem antes ouvires esta súplica. Fui orgulhoso, invejoso, egoísta e vil, e banqueteei-me de tudo com mordaz ganância. Mesmo assim, ofereço-te o meu amor, se é que ainda podemos fazer alguma coisa com isso, onde quer que estejas.

Toda a carne envelhece, e a minha já apodrece antes de realmente ser velho. Começo a ficar negro, as articulações chiam, os ossos por dentro tornam-se areia fina e cada passo magoa.

Estamos vinculados. Um vínculo que se estica pelo espaço e pelo tempo. E mesmo que nunca mais nos encontremos, de certa maneira, pelo que aconteceu, somos um do outro. Andei perdido, andei à procura disto e daquilo, sem saber o que poderia encontrar, e nesses caminhos tortuosos tive visões capazes de me fazer arrancar os olhos, para ficar cego. Mas as imagens não seriam apagadas mesmo que ficasse sem olhos. O fogo selvagem que vi fez com que tudo parecesse condenado, e por isso não adiantava arrancar os olhos e ficar cego.

Nu e a apodrecer, às vezes, por breves momentos, vejo-te e sinto que nada nos pode quebrar. Um osso partido seria somente um pequeno abanão, mas aquele fogo alto, barulhento e doido faz-me estremecer e parece, sem mácula, que tudo está condenado. Dessas chamas que avançam sobre mim, sobre os olhos que não arranquei, sobre a picareta que seguro e que não chega para me defender, elevas-te sem um arranhão em direção a um céu azul muito claro que se vai tornando escuro até te engolir totalmente quando já é noite.

Quando regresso, reparo que à minha volta isto é tudo sobre homens velhos e o que eles vêem quando vão para uma dimensão estranha e horripilante como a minha. Quando acordam, vejo-lhes na cara como estão ansiosos por planear o seu último dia e como se irão daqui com grande classe. Infelizmente, a realidade não lhes permite alcançar o cavalheirismo com que pretendem pôr termo a tudo. Tal como eu, aprisionados, envelhecidos, apodrecidos e arrependidos, não acabarão galantes.

Temos de perceber, aceitar mesmo, que tentar discernir o mundo através de visões que nos invadem quando já estamos moribundos não vai dar-nos aquilo que desejamos. Os tiranos choram sozinhos.

Mais um dia, mais castigo, mais dores. Nus, magros, podres, cheios de feridas, já sem dedos dos pés e sem unhas nos carcomidos dedos das mãos, esburacamos a pedra presa, como nós, à terra compacta. Doridos e ensanguentados, cavamos. Centímetro a centímetro, tentamos ir mais fundo para, quiçá, podermos esconder-nos debaixo do solo como espectros que não se descobrem na luz e que precisam do breu para brilhar. A cada centímetro alcançado, em direção a profundezas negras, ouvimos o chamamento.

Através de poeira e rochas, ouvimos o chamamento por sangue e ossos. E esgravatamos. As nossas almas são compelidas a isso, a irem, encerradas nestes corpos desajeitados e famintos, um bocadinho mais fundo. Tentamos a nossa sorte, à procura de um inferno que, pelo menos, não seja este. Encostamos o ouvido ao solo áspero que nos fere a pele purelenta e ouvimos um rosnado surdo, mas cheio, que faz tremer pedrinhas que rebolam infinitamente. É o chamamento.

Já ultrapassámos as pedras mais bicudas que nos magoam mais do que tudo o resto. Vamos em direção ao cerne, ao núcleo, à promessa de um inferno que, pelo menos, não seja este. Os nossos corações bombeiam loucamente. Estamos às portas da morte. Que bom. Os nossos olhos fixam-se na meta final. Mais um esforço. O rosnado é cada vez mais alarmante, mais próximo. Tudo depende de nós. É o chamamento, a promessa. É sangue e ossos que lá de baixo querem, então é sangue e ossos que terão.

É um feitiço inquebrável o de esgravatarmos um bocadinho mais fundo, por entre pó e pedras, ensanguentados e pútridos. Em frente, para baixo. Pelos nossos feitos menos recomendáveis, aqui vamos, devagar, devagarinho, amaldiçoados a pressionar e a perfurar com frágeis picaretas até ao fundo mais fundo possível. Incansáveis como as abelhas que não vislumbramos há largas temporadas, seguimos como um enxame. Cavamos e cavamos até que finalmente nos perderemos no seio de um inferno, seja ele qual for, mas que pelo menos não seja este. Ninguém ousa olhar para trás, para o que há muito deixámos destruído nas nossas vidas pouco estimadas, nem para cima, para um céu de várias cores que pararam de ser sedutoras. O céu fecha-se mais um pouco sempre que conseguimos ir mais fundo.

É tudo mentira. Não há outro inferno que não este.

Mais um dia, mais castigo, mais dores. Somos como Sísifo.

O sol queima-me a pele enquanto as costas doem excruciantemente sempre que a picareta balança de cima para baixo. Os buracos nas pedras e no solo rígido são cada vez mais, mas não saio do mesmo sítio. Há sempre mais pedras para rachar, nascem como parasitas incontroláveis. As horas custam a passar até que o sol se põe neste inferno que queria que fosse outro.

Mais uma manhã, mais um dia difícil. A rispidez do tempo e dos rochedos corroem-me o corpo. A loucura de querer sair daqui é tanta que, escavando à procura de outro lugar, me faz atirar a picareta para longe e revolver a terra bruta com as próprias mãos. É sangue e ossos que querem, é isso que vão ter. Pacientemente os terão. Dizem que isto é um inferno, mas é o meu inferno.

Os abutres voam rente ao meu pescoço. Sem pressa aguardam que o meu corpo caia uma última vez e que continue a apodrecer inanimado. Mas ainda não é hora para o festim.

Perfuro um pouco mais fundo. Dos lábios secos, esbranquiçados pela poeira que se torna lama na boca, escapa-me uma praga quando me lembro do momento em que coloquei as balas no revólver. Uma, duas, três orações sabe-se lá a quê e um tiro. À distância ouvem-se sinos que vão desmaiando comigo. Era um inferno, era o meu inferno.

O pó não assenta, o vento é devastador. Os abutres desaparecem e, com eles, os meus vestígios. Apenas um permanece. Fica para trás uma velha picareta com o cabo partido e nele escrevinhado um nome ilegível, como um fantasma do passado.

Mas volto, voltarei sempre a este inferno. O corpo nu e a apodrecer, as visões de fogo, o amor perdido que se transcende aos céus e eu cá em baixo a vê-lo partir, o chamamento, o rosnado, a promessa de outro sítio que não este e que deverá estar um bocado mais ao fundo, por baixo de mais uma rocha, no escuro onde posso brilhar novamente. Volto sempre, de picareta na mão gretada. Mais um dia, mais castigo, mais dores. Poderão dizer que isto é um inferno, mas é o meu inferno.


(15/05/2025)

as ondas que teimam em trazer-me de volta

Estou velho. Nem sei se estou cansado do corpo ou da vida. Os meus cabelos são brancos e raros, as minhas pernas custam a mexer e os joelhos chiam como dobradiças enguiçadas, os meus braços tornaram-se finos como palitos, as minhas mãos são o dobro do tamanho do que deviam ser, cheias de calos nos dedos e nas palmas, as unhas crescem grossas mas acabam por se partir como palha seca. A minha respiração é calma, mas está longe de me trazer serenidade. Custa-me ter os olhos abertos, mas quando os fecho vejo coisas que não quero recordar. A visão romântica do mar e nele navegar é uma mentira. É uma prisão, uma desgraceira, uma imundice, uma incerteza. A minha pele é tão rija, tão áspera e tão adusta que não há sol que me faça mais enegrecido. Mas não é só por fora que estou chamuscado.

Estou tão velho e tão cansado. Mereço descansar. Enfrentei ventos selvagens e nevoeiros espessos como nunca sentirão em terra firme, e convivi com homens desajustados, ignorantes, brutos. Pergunto-me como sobrevivi durante tanto tempo. Combati ondas gigantes que me queriam engolir, sugar e desfazer, mas foram sempre essas ondas traiçoeiras que me trouxeram de volta. E sempre que tentei deixar-me ir, regressei. Pergunto-me porquê.

Vi ir embora quem talvez merecesse menos do que eu. Como naquele dia em que um marujo ainda muito verde foi pela primeira vez arreado à água, no seu pequeno dóri. Maldito dia, o mar não estava para brincadeiras e para pouca experiência. Mas ele lá tinha de ir. O homem responsável pelo rapazito estava muito doente, a ferver em febres alucinantes no seu beliche. Era um homem tão grande e forte que o cubículo onde dormia era pequeno demais para tamanho porte. A doença derreteu-o em poucos dias, sem nunca saber o que tinha ocorrido lá fora, na labuta ingrata. E lá tinha de ir o receoso protegido na sua vez, naquele dia em que o mar rugia, ferozmente suplicante, por oferendas. Já me esqueci do nome do moço e também não o quero lembrar, mesmo que fosse capaz. Tão verde e imaturo, uma pena. São estas coisas que vejo quando fecho os olhos. Também fui descido ao mar nessa hora matutina. Não havia ponta de sol, era uma noite de dia, as nuvens estavam cinzentas e carregadas, o mar compacto batia nos nossos botes e desintegrava-se em gotas que nos feriam a cara, como minúsculas pedras aguçadas. Tentei abeirar-me o máximo que podia do infeliz, mas nada a fazer contra correntes e vagas com uma vontade tão própria e singular que nunca iremos compreender. Cada pescador foi levado para onde não pretendia. Era um dia de sorte ou de azar, não havia talento que prevalecesse. Também eu fui arrastado para outras bandas, afastado do moço. Ao longe via as ondas a crescer. Eram escuras, mais escuras do que as nuvens que tapavam o firmamento, e no cume uma espuma branca e espessa coroava o marchar da morte. Cada vaga daquelas trazia um carimbo de mortandade, um selo invisível que vinha já a marcar o seu destinatário, só não sabíamos qual de nós seria virado e engolido. Nunca deveríamos ter ido ao mar naquele dia, mas o porão estava tão vazio que o capitão preferiu a sua honra e a do armador em terra descansado do que a vida dos seus homens. Não foi preciso muito tempo até o alarme soar para que regressássemos. Foi tudo tão rápido que nenhum homem tinha lançado sequer a linha à água, mas foi o suficiente para o desastre acontecer. O verde marujo foi levado para longe de mim, de nós. Os mais fortes e experientes remaram contra tudo o que se lhes opunha, e, por entre façanhas e atos de puro instinto de sobrevivência, por entre crenças e derradeira expiação de pecados, todos os veteranos, eu incluído, se acercaram do navio-mãe. Todos menos o moço. As ondas que me trouxeram de volta foram as mesmas que, ao separarem-se de mim, se viraram para ir de encontro ao rapaz que mais não regressaria. Metro a metro, ora o víamos na crista de uma vaga, ora o perdíamos da visão quando se formava um vale líquido entre as ondas revoltadas, como colinas. Gritámos para que remasse. Gritámos sem parar, mesmo sabendo que não nos ouviria, pois já estava no centro da tempestade, mas continuámos a chamar por ele, por um nome que esqueci. Até que a maior onda que alguma vez vi se ergueu de rompante em direção ao céu e desceu impactante contra o desgraçado que nem um bacalhau teve a felicidade de pescar, virando-lhe o dóri, destruindo-lhe a madeira do casco e dos remos, esmagando-o como se duas paredes se fechassem uma na outra. As ondas que me trazem de volta são aquelas que levam outros para uma eternidade que ainda desconheço. E é por isso que nunca quero fechar os olhos, por mais que me custe, porque são estas as coisas que vejo. Dizia-se que tinha deixado uma namoradinha em terra, à sua espera. Ouvi-o uma vez dizer que se ia casar em breve e encher a casa de filhos para ser feliz sempre que regressasse. Nem uma carta escreveu, porque não sabia escrever e não queria que escrevessem por ele, mas tinha sonhos. Tão ingénuo. Hoje está com o mar, e os filhos que não deixou são a sua solitária companhia para sempre. E quando não fecho os olhos, pois não quero rever todas estas coisas, é o som do mar, porque nunca saí de perto dele, que teima em trazer de volta estas memórias.

Sempre que peço para ir-me daqui, deste plano feito de areia ou de chão firme que nunca balança, as ondas que teimam em fazer-me regressar trazem ao pensamento outro homem do qual o nome também já se me esfumou. Este escravo da água salgada também tinha sonhos, mas não eram desejos, eram imagens em movimento que o subconsciente produzia enquanto passava pelo sono nas poucas horas que podia dormir. E é de um sonho muito particular que se trata esta recordação. Quando fecho os olhos de cansaço, imagino aquele sonho que ele nos tinha contado certa manhã antes de sermos arreados ao manto de água. Contou-nos então que tinha acordado muito sereno por causa do sonho que teve, uma perceção muito vívida de que caminhava livremente no fundo do mar ao lado dos dois filhos. Disse-o com uma tranquilidade tão pura como nunca lhe tínhamos visto ou ouvido. E foi tão estranho vindo de um homem efusivamente aguerrido e pouco dado a sentimentos. Nunca falava dos filhos, nem da terra que o viu nascer, da qual eu nunca soube qual era. Remava como ninguém, era quem ia para mais longe, e a sua voz era, por vezes, mais altiva do que o assobio cortante de ventos que aterrorizam. Vimo-lo, certa vez, a erguer-se no seu dóri, de braços abertos, virado para uma onda que se formava contra ele. Desafiou os deuses do mar e venceu. Aquela vaga, que iria atingir uma altura tenebrosa, tão depressa se esticou ao alto como desvaneceu perante tal espetáculo de um só homem contra a natureza. No regresso ao navio-mãe, o excelente pescador e remador ria com desdém, sem medo, mostrando aos outros como se fazia, como se combatia o incombatível. Mas naquela manhã, quando nos contou o sonho, toda aquela casca rija se tinha tornado numa fina camada de manteiga derretida. Era dia de mar calmo, uma planície autêntica, nem uma nuvem se vislumbrava, a pescaria seria boa. Fomos arreados, cada um na sua vez e a soltar vivas uns aos outros sobre um dia que iria ser de grande sucesso. Passado um par de horas, um repentino e denso nevoeiro assolou aquele banco de pesca. O mar continuou manso, mas a neblina era tão cerrada que não se via um palmo à frente dos olhos. A ronca do navio soou imediatamente e todos regressámos conforme pudemos, através do instinto mais básico da audição. Todos, menos o homem mais bravo que alguma vez vira. Não sabemos como, nem porquê, nem por quem, mas foi abocanhado pelo nevoeiro. Desapareceu sem deixar rasto, nem o seu búzio se ouviu, se é que fez uso dele. À medida que nos íamos aproximando do som da ronca, o nevoeiro foi levantando e ali estávamos todos, devolvidos à ténue segurança do navio-mãe, por ondas que teimam em trazer-me de volta. Todos menos aquela alma dura em corpo ainda mais duro. Nem homem, nem bote. Nada. E quando fecho os olhos, vejo-o a caminhar livremente no fundo do mar com os dois filhos. Passado dois dias, atracámos numa pequena povoação portuária e havia um telegrama endereçado ao desaparecido. Leu-nos o capitão sobre os dois filhos do sonhador. Tinham morrido tuberculosos. O mar lá sabe o que faz, tanto sobre os que leva como sobre os que faz regressar, como eu, que não consigo ser mais teimoso do que as ondas que me trazem sempre de volta.

Estou exausto, mas as ondas que insistiram em trazer-me de volta continuam a trazer-me também lembranças. Gostava de me recordar de quentes momentos de paz e despreocupação, mas o baque dessas ondas é tão retumbante que é impossível fugir a memórias de desventura. Quando fecho os olhos no preciso instante em que uma onda rebenta, relembro um desalmado caído em desgraça. Também já não me lembro do seu verdadeiro nome, só das palavras maldosas com que o tratavam. Ora era o cornudo porque se dizia que a mulher se deleitava de prazeres com outros homens em terra enquanto este sofria e mal suportava as escoriações interiores e exteriores da faina, ora era o manco porque, certa ocasião, ficou com uma perna horrivelmente presa entre o remo e a borda do dóri, ora era o tolinho porque falava sozinho e nada do que dizia se percebia. Tinha-se tornado numa sombra desbotada do homem robusto, digno e decisivo que tinha sido noutros tempos. Era penoso vê-lo regressar com pouca pescaria, era doloroso ouvir o que diziam dele, tanto na sua frente como, pior ainda, nas suas costas. É incrivelmente triste ver o que o mar é capaz de fazer a alguns homens, tanto os que se tornam vis e mesquinhos seres como os que agoniam com isso. Gozado por quase todos, o seu olhar de viés perante o que ouvia foi-se tornando cada vez mais ominoso e as palavras que dizia baixinho para si mesmo eram cada vez mais impercetíveis. As ondas que me traziam de volta, com o bote cheio, a transbordar de bacalhau, eram as mesmas ondas que o faziam regressar a ver-se o fundo da sua minúscula embarcação, sem quase nenhum peixe. Ainda hoje não aguento tamanha pena, mesmo tão velho e distante daqueles dias. A minha velhice e cansaço em nada amainam esse sentimento. Havia de ser deixado em terra, em qualquer porto, deixado à sua sorte, longe de casa, porque para a faina já não servia, era o que se dizia na sua cara nas poucas horas de convívio enquanto se comia e bebia o que dava para comer e beber antes de se dormir o pouco que dava para dormir. Num dia de mar bravo e de chuva copiosa, as ondas trouxeram-me de volta com uma considerável pescaria dadas as circunstâncias, ao contrário do desafortunado, sem um único bacalhau. Estava mais do que visto que tal ia acontecer, fosse mais tarde ou fosse mais cedo, calhou ser naquele dia. O desalentado foi alvo do maior gozo de sempre, mas, por entre todas as maledicências, havia dois tripulantes, com nomes que não interessam por causa de conspurcarem a honra humana diariamente, que ultrapassavam todos os limites, para lá de cornudo, manco ou tolinho. O desorientado, a ouvir aquilo tudo, depois de horas a fio no mar, isolado no seu dóri, a mandar linha e anzol atrás de linha e anzol e a nada tirar do fundo daquelas geladas águas, armado com uma longa e afiada faca de escalar, atirou-se a um dos seus rivais sem que este estivesse à espera. Lembro-me bem, porque as ondas continuam a trazer-me de volta todos os segundos passados naquela horrível vida, quando aquele homem, agora magro, a definhar, se lançou às costas do inimigo, desferindo-lhe um golpe profundo na garganta. O outro maldizente, mesmo ao lado, agarrou o esfaqueador, empurrou-o para o chão e, no meio da confusão instalada, por entre pés e braços que depressa se misturaram para acabar com o incidente, tropeçou, caindo em cima do corpo do adversário. Enquanto o ferido estrebuchava no chão do convés, a revirar os olhos e a jorrar sangue negro pelo lado direito da garganta, como quem diz, a dar as últimas, o companheiro, que o defendeu tarde demais, batia, com pesados murros, no atacante, mas cada vez menos, com menor preponderância e energia. Enquanto todos os outros marinheiros debatiam sem se perceber nada e quase se agrediam, ou outros que se abeiravam do esfaqueado, enquanto o capitão mirava de cima, desde a casa do leme, enquanto tudo e mais alguma coisa que se reaviva em mim através das ondas que batem na areia e me trazem tudo de volta, a força daqueles murros tornou-se nula. É que o gozão não só caiu em cima do desastrado a quem chamavam cornudo, manco e tolo, como também caiu, de peito aberto, na ponta aguçada da faca que se enterrou em si. Foi nesse preciso momento que o capitão e o seu imediato acabaram com a bagunça através gritos de ordem e arremesso de corpos enfurecidos com olhos esbugalhados de lágrimas raivosas e com ânsias de voltar a casa. E foi também aí que percebi, como tão bem recordo quando fecho os olhos, que aquele desafortunado homem tinha assassinado os seus dois constantes perseguidores quando esforçadamente saiu debaixo daquele peso viril. Nas mãos já não tinha a faca, nas mãos tinha o sangue de dois outrora companheiros de todas as horas. Tentou limpar essas mesmas mãos, que tantas linhas e anzóis lançou ao mar, à sua camisola preta e grossa de gola alta, mas aquele líquido espesso e vermelho não se descolou da pele. Desorientado, a chorar e a pedir perdão, todos os tripulantes o olharam com perplexidade. Rodeado por homens que se estavam a transformar em animais irracionais, foi pé ante pé, para trás, que devagar se aproximou dos limites do navio para num ápice de desespero se mandar a si próprio borda fora. Aquelas ondas, que se obstinam a trazer-me de volta, levaram consigo, para intermináveis fundos, um desgostoso miserável que me aparece na memória sempre que, contra a vontade, fecho os olhos de cansaço.

Não sei a minha idade, só sei que estou velho e cansado. Se calhar tenho trezentos anos e trezentas mil ondas teimaram em trazer-me de volta. Não sei como e por que é que sobrevivi tantas vezes e tantos anos. Pergunto-me porquê. Há quem diga que sou um sábio, mas renego. Julgo até ser tão desajustado, ignorante e bruto como os outros. O engenho de marujo perseverante já não está em mim, apenas acerto aqui e ali nas horas consoante a posição do sol, sei dizer o nome de um ou outro astro e pouco mais. Estou velho e cansado, e simplesmente não me deixam ir embora. Sim, as ondas, essas mesmo. Se calhar ando há duzentos anos a contar as mesmas histórias que quero esquecer e não sou capaz, porque é quando fecho os olhos para morrer que elas se reavivam com mordaz afinco, e, assim, duzentas mil ondas teimam em trazer-me de volta sempre que me lanço ao mar, que é, enfim, a minha verdadeira casa.


(05/03/2025)

Não sei se consigo voltar para casa...

uma chamada telefónica durante a madrugada


Quatro e doze da madrugada. Toca o telemóvel. Ela acorda confusa, a pensar que já seria de manhã, que é o despertador. Mas aquele som não é o toque do despertador, é mesmo uma chamada. Enquanto pega no telemóvel, que está em cima da mesinha de cabeceira, estica o outro braço para o lado oposto e percebe que está sozinha na cama. No ecrã do telemóvel, que lhe ilumina a face estremunhada, vê que quem lhe liga é o namorado. Atende, e fala com voz de muito sono: «Estou...» Os primeiros sons que lhe chegam ao ouvido são ruidosos, como um formigueiro da televisão. «Estou...?», repete. «Não sei se...», diz-lhe do outro lado, com a frase a ser cortada por ruídos a fritar a ligação.

«Não sei se... consigo voltar para casa», acaba ele por dizer.

«Onde estás? São...», tira o telemóvel da orelha para ver as horas, «...quatro e tal da manhã.»

«Não sei... E não sei se consigo voltar para casa...» A voz dele, por entre cortes, transmite calma. Ela sabe que ele é assim, que se comporta tranquilamente nos momentos mais complicados – algo não está bem.

«Como assim, não sabes onde estás? Estás sozinho? Mal te ouço...»

«Estou a conduzir, está a chover muito, pouco ou nada consigo ver da estrada. O GPS não funciona, o pára-brisas está sempre a encravar, o rádio só dá um apito sem interrupção.»

«Mas onde raio te foste meter? Disseste que ias passar em casa dos teus pais, que nos tinham feito bacalhau com natas para almoçarmos amanhã, e que depois ias beber um copo rápido com o pessoal. São quatro e tal da manhã!»

«Não sei onde estou!»

«Estás bêbado?»

«Não! Bebi duas cervejas.»

«Estás a meter-me medo! E isto não são horas para estas brincadeiras! Vem para casa!»

«Não sei mesmo onde estou! E não sei se consigo voltar para casa...»

Palavras ininteligíveis, estampidos, picadas como se pedrinhas estivessem a bater em vidros. «Pára o carro, não continues se não sabes por onde estás a ir. Por favor!»

«Parece que estou a andar às voltas, as árvores são sempre iguais, já vi a mesma paragem de autocarro não sei quantas vezes, dou com vários cruzamentos, e, do pouco que vejo, os sinais só me permitem virar sempre para o mesmo lado. Chove mesmo muito, está tanto vento que me abana o carro e está escuro! Nunca vi esta estrada.»

Bem acordada e alarmada, repara que, lá de fora, não se ouve um pingo de chuva. «Só podes estar a gozar comigo! Não está a chover! Estamos no pico do verão. Pára com a brincadeira, estás bêbado! Tu não és assim! O que é que te deu hoje? Vem para casa!»

«Não sei se consigo...»

«Amor, pára...» E começa a chorar.

«Desculpa. Não estou a brincar, estou mesmo perdido.»

«Não passa por aí ninguém?» Silêncio. Sons estrépitos. Silêncio. Mais sons irregulares. «Estou!?»

«Estou sozinho. Estou sozinho e perdido!», grita. «Não sei se consigo voltar para casa!», grita com mais agonia, enquanto se ouvem batidas, murros, que ela julga serem do namorado a bater no volante.

«Calma! Calma, amor, por favor...», pede ela, a chorar cada vez mais.

«Nunca pensei que fosse acabar assim, perdido, sem conseguir voltar para casa.»

«Tu vais voltar! Estejas onde estiveres, vai parar de chover. Não conduzas mais, aguenta mais um par de horas, vai amanhecer, vais saber onde estás e vais voltar.»

«Não sei se consigo...», a calma dele já era apatia, resignação.

«Olha, começou a chover aqui também. Não deves estar longe. Acalma-te. Vamos acalmar-nos...», pediu, agora sem lágrimas e com carinho. Voltou a esticar o braço para o lado oposto e vazio da cama. Apertou o lençol, enrodilhando-o na mão.

Deixou de o ouvir. Até que...

«Já me fiz à estrada outra vez. Tenho de encontrar um caminho. Caraças, não há-de ser assim tão difícil! Mas nunca estive aqui.»

«Não, não! Pára o carro!»

«Mas eu quero ir para casa! Só não sei se consigo...»

«Eu também quero que venhas. Passei o dia com tantas saudades tuas, tão angustiada. Tenho tantas saudades tuas!»

«Tenho sempre saudades tuas. Terei sempre saudades tuas... Nunca te vou esquecer. Nunca me esqueças.»

«O quê? O que é que isso quer dizer?»

«Amo-te.»

«Amor...?»

«Desde o primeiro dia, quando te disse para leres aquele livro, naquela livraria...»

«Pára! Pára com isso! Acabou a brincadeira, por favor!»

«Não consigo voltar para casa... Desculpa.»

«Volta!»

«Amo-te.»

«Eu também, eu também! Mas volta!»

«Não consigo...»

«Não faças isso!»

«Não quero fazer. Simplesmente não consigo deixar de estar perdido. E está tudo bem.»

«Não, não está!»

«Pois não... Tens razão! Quero muito voltar, mas desculpa, não vou conseguir...»

«Anda para casa! Vem para ao pé de mim!»

Do outro lado, um respirar abafado, como que a perder o ar, a arfar com aflição e ânsia, mas, paradoxalmente, sem descontrolo. Ele ia falando, baixinho, impercetível, a falar consigo mesmo, ela não percebia nada. Os ruídos elétricos misturavam-se com ventanias e pingos grossos.

«Não consigo...»

A chamada caiu.

E ela acordou. «Era um pesadelo...» Estava com frio. Tinha um pé, descalço e desprotegido, fora da cama. Estava baralhada. «Sim, foi só um pesadelo.» Pegou no telemóvel, que lhe iluminou a cara no meio da escuridão. Quatro e doze da manhã. «Ainda tenho mais umas horinhas para dormir...» Pousou o telemóvel na mesinha de cabeceira, voltou a meter o pé debaixo do lençol, virou-se para o outro lado e sorriu enquanto abraçou o namorado. O corpo dele estava rijo e arrefecido, e não reagiu como sempre fazia quando ela o abraçava durante a noite, para se aconchegarem.

Passou-lhe a mão pela cara, suavemente. «Amor...» Abanou-o, levemente. «Amor?» Puxou o seu corpo pesado contra si. «AMOR!?»

Não conseguiu regressar.


(09/02/2025)

A carta que nunca vais ler

Quantas e quantos de nós quisemos dizer o que está aqui e não dissemos?
Ou dissemos e rebentámo-nos em pedaços?
É uma carta de amor. Usa-a: fica com ela para ti ou dá-la a alguém.

Esta é a carta que nunca vais ler, porque nunca ta vou enviar, mas vai ser partilhada por aí e mesmo assim não a vais ler. E como não a vais ler, também não saberás que é para ti.

A ingenuidade das primeiras tímidas palavras e o ocultar dos primeiros olhares cruzados, sempre a pensarmos que o outro não percebia, criaram uma fatuidade aparentemente ilógica – isto não estava a acontecer, não podia acontecer e não ia acontecer.

Cheguei a aquecer por dentro e depois a gelar também. Acabaram-se os tempos dos impulsos, das palavras desmedidas, das emoções repentinas e sem filtro. Ganha razão, tem de ganhar a razão. Mas nem sempre foi assim. Voltei a aquecer. O gelo regressou depois. E aqueci novamente. E o meu âmago é uma crise climática constante – todo alterado e adolescente, que, a muito custo, tende a assentar e a ser um adulto racional.

A nossa sorte é que nunca houve promessas, sempre com medo dos estilhaços que nos cortariam os pés se alguns compromissos, inicialmente cheios de empenho, fossem quebrados. Rimos muito, dissemos parvoíces, apanhámos bebedeiras e até tentámos debater filosofia – o que é o estoicismo, o pessimismo e o que somos e andamos a fazer afinal connosco e com os outros nesta curta, preciosa e tão feliz quanto sofredora passagem por este planeta. Somos assim tão únicos no infinito do Universo? Não haverá mais vida complexa na vastidão de milhões e milhões de galáxias? E será que somos assim tão únicos, por cá, que não há mais ninguém por quem nos apaixonarmos?

Vou falar, não vou falar. Vou convidar, não vou convidar. Vou admitir, não vou admitir. O tempo é a resposta: para apagar ou para acicatar ainda mais irresponsavelmente. Quis limpar essa lousa, em que tinha escrito pensamentos, sentimentos e resoluções, e consegui – não durante muito tempo. Ri contigo, ao teu lado ou à distância, enquanto me doía não dizer o que queria – por medo, por respeito, por querer defender a inocência dos risos e das piadas, até dos olhares.

Batemos numa parede quando admitimos, e essa parede ruiu comigo, por uma ribanceira. Não ponderei as minhas hipóteses, aceitei a queda – e lá fui eu por ali abaixo, ao rebolão. E os ossos não seriam o maior problema. A alma é que se partiu toda. Mas também não vamos ser melodramáticos ao ponto de encenarmos uma peça de teatro regada por lágrimas falsas e gritos desesperados que não são mais do que profícua atuação. Isto era só paixão – mas porque não pensar em amor? Não agora, mas depois, talvez um dia destes, pé ante pé, com os mesmos risos, parvoíces, debates filosóficos sobre a música, os filmes, os genocídios e a própria vida, mas com beijos à fugida, apalpões firmes e noites passadas na mesma cama. E se dá merda? Nunca saberemos. Nem estás a ler isto sequer, portanto não importa.

Admitimos, primeiro respirei de alívio e depois, quando acordei, dei por mim espatifado contra um poste de eletricidade que aguenta, intacto, o maior dos camiões – não vai dar, sabemos que é melhor nem irmos por aí. Admitimos, mordemos a língua e vamos sufocar com o nosso próprio sangue. Não é o que te desejo, calma. Mas é o que nos aconteceu. Nem há choradeira, e esse sangue também é só uma metáfora – afinal isto é só uma carta de amor que nunca vais ler, não é um conto de terror sanguinolento.

Se calhar íamos prometer rosas e ficaríamos, pouco depois, com os espinhos cravados nas pontas dos dedos, nas palmas das mãos, nos pescoços, nos lábios, até nos olhos caso nem nos pudéssemos ver à frente. Às tantas íamos achar que conseguiríamos viajar por vários sistemas solares, em movimento de translação à volta de diversos sóis que éramos realmente nós próprios, mas se calhar nunca iríamos sair deste plano terrestre e o primeiro passo dado seria para pisar uma mina e outra e outra, até não haver mais carne e espírito para se ver a despedaçar no ar e a cair desfeito, aos bocados, no chão.

Houve dias em que achei que encaixávamos como puzzles – senti esse fascínio utópico. Mas isso já não é estar-se apaixonado? Não quero. Mas houve desses dias – e alegrei-me, renasci momentaneamente, imaginei cenários, obtive coragem. Só que aterrei, enfim, com o peso da razão que é tão forte como a gravidade. Lá se foram os sistemas solares, as galáxias, os beijos e o arrebatamento, mas ao mesmo tempo também desapareceram as minas e as explosões que nos iam destruir a simplicidade de podermos continuar a ver-nos e a falarmos sem rancor – talvez com alguma tristeza ou passageira relutância, mas nunca com aversão.

Os dias passam e a sagacidade da paixão murcha. E está tudo bem. Tem de estar tudo bem. E não quero voltar a sentir frio na barriga, nem quero ficar com o teu cheiro na minha camisola quando me dás um abraço acompanhado de um sorriso lindo.

E o pior de tudo é que mesmo assim, decididos a não tentarmos nada em nome da paixão, da tesão ou mesmo do amor (porque não?), estilhacei-me como vidro frágil. Acho que vou sangrar mais do que tu. Silêncio.


(31/12/2024)

A Decadência

(Escrito em dezembro de 2022,
reorganizado e livre de heterónimos em dezembro de 2024)
(contém linguagem ofensiva)


Já dizia o poeta que na hora da trova todo o medo estorva. Que poeta? Nenhum poeta, pá! Fui eu quem disse isto, agora mesmo.

Eu, estudioso inveterado da decadência pós-isto, pós-aquilo e do caralho que vos foda, namorado do vernáculo, prometido do álcool e noivo do vínculo à morte certa que me escapa, pelo menos até ontem e até este momento.

Chorem as putas e os pobres, as amantes e as comadres, os snobes dum raio e as elites da merda. Mas riam também, seus burros de carga da sensibilidade oca – riam de quem está ainda mais fodido, não tenham medo de ser cancelados. Até porque cancelados estamos desde que nascemos – a morte é o objetivo da vida.

A decadência não é mais do que rir da desgraça do outro e no fim, sozinhos na cama, à noite, no escuro, choramos como desalmados porque também somos uns desgraçados de merda que nos pavoneamos na rua, mas a sopa é comida na solidão e a punheta não há quem a bata a não ser nós próprios. Ou então choras tu, que eu cá não verto uma lágrima. Que se fodam as lágrimas e a solidão, quero é risota e farra até de manhã! E para quê? Para passado umas horas acordar sozinho, cheio de dores, boca seca como uma cona frígida e ser um roto como qualquer outro sobre quem aqui mal estou a falar.

Ai a decadência, essa mula velha que teima em querer voltar a levantar-se. Chorem para aí, espantalhos esburacados pelos bicos do consumismo, virem até a página e emocionem-se com tristezas bacocas.

Eu cá vou beber até cair, contar histórias aparvalhadas, gozar com os cocainados que já nem têm nariz e rebaixar os ignorantes, esses abençoados do desconhecimento que vão viver mais anos do que eu porque não pensam em lá grande coisa, só nos cinco cêntimos de nada que trazem no bolso sem fundo.

Fodam-se, que eu também me fodo.


(28/12/2024)

Ajuda-me a desaparecer

Escrito em 2021 ou 2022, não sei...
Recuperado no final de 2024.


«Quem és tu?», perguntou-me um velho que me encontrou a atirar pedras ao rio. Eu não falava com ninguém há meses, até perdi a conta. Aliás, não falo sequer, nem comigo próprio. Por alguma razão que me transcende, decidi falar imediatamente. A minha resposta foi longa e o velho ouviu-me com atenção e aparente carinho.

«As minhas perspetivas tornaram-se cada vez menos promissoras, é difícil acreditar no que quer que seja. Perdi a confiança, perdi a fé, perdi um mundo ao qual não consigo regressar. Não digo verdades, não digo mentiras, simplesmente não falo e os pensamentos são turvos. Não há significado, é tudo dormente e fico cheio de medo. Quando eu ainda falava com pessoas, diziam-me que há mais do que uma hipótese. Abençoam-me, desejam-me tudo de bom, mas mal sabem que a minha juventude foi roubada, traficada, vendida. Fiquei neste corpo sem alma. Deambulo por aqui e por ali, sozinho. Um dia novo, não podia ser pior!

Há um nevoeiro cerrado que esconde a luz. Tão forte que me apaga a consciência. Já fui feliz, já tive um papel, mas, aos poucos, sempre que eu chegava a um sítio, as pessoas já não ficavam. Iam embora com poucas ou nenhumas palavras. Comecei a aprender o silêncio, depois comecei a aprender a solidão. Já nem se dignavam a mentir, simplesmente ninguém aparecia. Estou preso numa cidade de vidro que parece frágil, que parece fácil de estilhaçar, mas não é... Está feito, não quero saber!

Hoje sou um zero, nada. Não importa o que fui ou onde estive. É este o filme da minha vida que ainda ninguém viu e que estou a contar agora. É um bom guião? Se calhar não. Não importa, e já mal me lembro de quando diziam para ir em frente, mesmo que o ouça com atenção nos confins da minha memória. Se chamarem por mim, já não quero saber. Mas ninguém chama por mim. Se alguém por acaso falasse comigo e me dissesse que sou importante, será que pensava duas vezes? Como seria? Não sei, já não me importo. Imploro por uma mudança, mas não com todas as forças necessárias. A decisão está tomada!

Por favor, ajuda-me a desaparecer, a dissolver-me completamente num sono profundo e eterno. Tenho a mente feita em papa e as mãos magoadas. Ajuda-me a desaparecer e promete que nunca mais saberei o que é conhecimento. Não quero ficar neste mundo aberto enquanto me sinto um pássaro numa gaiola. Vais ajudar-me a ter coragem? Vais ajudar-me a acreditar numa mudança? Uma mudança para um sítio onde não há pesadelos e onde não sinto a falta de alguém. Se me ajudares a fugir, eu sei que vou respirar outra vez. Vou respirar num isolamento profundo sem ter que pensar, sem sentimentos que magoam, sem me preocupar com o significado das palavras que não conheço. Solidão é uma doença, mas isso só acontece aqui e não no lugar para onde quero que me leves.»

«Vá... Já caminhaste muito», respondeu-me o velho. «Perdeste tudo numa inundação de incertezas e de traições, mas vem sentar-te comigo num bar, vou falar-te de progresso e isso vai fortalecer o teu fino sangue. Já ninguém sabe o teu nome, mas o meu também não sabem. Vou trocar-te as memórias por vazio.»

«Por que é que demoraste tanto?», perguntei. O velho respondeu: «Já te vi há muito tempo. Encontrei-te. Mais ninguém te encontrou. Há quanto tempo te dão como perdido? Já nem sabem o teu nome. Vamos desistir de tudo por uma coisa boa, por uma canção destinada a não ser cantada. Tu é que foste embora. Não te lembras? Esperaram muito e fartaram-se de esperar. Ias despedaçar os sonhos de toda a gente e não quiseste saber, e agora choras? Foste egoísta e agora julgas os outros por não responderem ao teu chamamento? Isso não significa nada para mim e vou finalmente conceder-te o desejo de desaparecer, mas primeiro saberás por que é que estás aqui.»

Um feixe de luz atravessou-me os olhos e vi-me sentado numa cadeira, a percorrer os dedos pela minha pele: cara, peito, braços. Como se o estivesse a fazer pela última vez. Ouvia-me a pensar: «Estou muito feliz por teres vindo.» Mas aquela felicidade depressa se tornou em tormento. A pessoa tinha realmente vindo, mas era para uma curta visita, nem cinco minutos, um adeus. Ela ia embora para sempre. Vi-me a escrever uma nota e a beber de um copo opaco. A minha cabeça tombou.

O papel dizia: «Os meus cumprimentos a todos de quem gosto. Diz-lhes que vou ter saudades.»


(27/12/2024)

Rosália, a corta-pilas

Spoiler alert:
é o que o título diz

Nunca na Rua de São Lázaro, tendo em conta a ironia do seu nome em relação aos eventos aqui contados, tanta mortandade, e macabra, aconteceu como no ano passado. A velhice colheu uns, o crime ou o acidente colheu outros.

Primeiro o Zé do Assobio, encontrado a boiar num poço. «Então o Zé do Assobio foi encontrado no poço a caminho do ribeiro?», perguntou um homem da rua, na manhã seguinte, enquanto bebericava um café na padaria. «É verdade... Não quero cá pôr culpas em ninguém, e se calhar até caiu com a bebedeira, mas às tantas foi alguma que o atirou dali abaixo», respondeu o empregado. É que o Zé do Assobio, para além de bêbado, tinha a mania de assobiar e mandar umas larachas às mulheres, velhas e novas, que ali passavam, perto do poço, em direção ao ribeiro para irem lavar roupa. «Coitado... Olha, já não assobia mais...»

Uns meses depois, comentava-se na rua que o Tó Crispado, que ninguém lhe podia dirigir a palavra que ele crispava-se logo todo, tinha sido encontrado morto em casa pelo irmão mais novo. «Então o Tó Crispado foi encontrado morto? Envenenado, disseram-me...», cochichou uma velhota. «Pois, parece que sim», respondeu a Rosália. «Olhe menina, também para as coisas que ele dizia às moçoilas quando elas passavam por baixo da janela...» «É assim a vida...», disse a Rosália a afastar-se da coscuvilhice.

A Rosália era uma jovem mulher, solteira, filha única, já sem pais. Vivia sozinha num pequeno apartamento na Rua de São Lázaro, que era a única coisa que os pais lhe tinham deixado – e já não foi mau. Isso e o emprego numa fábrica. «Um teto e um trabalho? Olarilolé!», respondia o vizinho de baixo, um reformado que ainda fazia uns biscastes, quando a velhota de cima lhe sussurrava que só era pena a Rosália estar solteira.

Bonita e sempre bem educada, poucas vezes se via a Rosália. «'Tadita da miúda... Sozinha, é só casa, trabalho, trabalho, casa», também se dizia pela rua. E onde ela mais detestava ir era à loja do Sr. Agostinho. Nunca gostou dele. Desde catraia que ouvia impropérios daquele homem que tinha idade para ser seu pai – tais como: «Olha a Rosália, sempre linda e aperaltada. Se não ficares para o meu filho, quando te fizeres mulher cá te caço!» Rosália sentia nojo desde sempre. O filho do Sr. Agostinho estava emigrado, a mulher tinha morrido com um cancro e a filha tinha-se suicidado, o que não abonava nada em favor dele, porque se apalavrava baixinho pela rua que a menina, acabada de terminar o liceu, se tinha matado por causa do pai. Mas dentro de cada casa, cada um sabe de si.

Certo dia, a Rosália, enquanto pagava as compras, meteu ao bolso um saco de rebuçados, mesmo nas barbas do Sr. Agostinho. «Vá, desta vez escapa. Por seres tão arranjadinha, eu perdoo. Leva lá os rebuçados.» Na semana seguinte, um saco de sal; noutro dia, um pacote de arroz – sempre sem o Sr. Agostinho ver. E noutra ocasião, a Rosália, que já não podia com o cheiro da mercearia e do homem, quis levá-lo ao extremo da paciência e resolveu fazer um número à séria. Entrou com pressa, foi direita à prateleira dos vinhos, pegou em duas garrafas, virou-se e seguiu em direção à saída. «Então até para a semana, Sr. Agostinho!» O homem não queria acreditar naquilo! A menina, a mais educada e airosa da Rua de São Lázaro, tinha acabado de lhe roubar duas das mais caras garrafas de vinho. Não saiu do balcão para correr atrás de Rosália, mas ficou a moer naquilo... «Ai na próxima vez que cá vieres...»

E houve uma próxima vez.

Rosália entrou no estabelecimento, disse boa tarde e dirigiu-se à secção das especiarias como se nada de mal tivesse feito na semana anterior. O Sr. Agostinho foi atrás dela e, encurralada no fundo do corredor, viu o homem a tirar o cinto das calças. «Agora vais aprender a não ser ladra!» Agarrou-a com toda a força, que também não era precisa muita dada a fineza de Rosália, virou-a de peito contra as prateleiras e deu-lhe três chibatadas no rabo. Rosália não só não chorou como ainda gemeu quase sem se ouvir, largando um sorriso maroto e um olhar de soslaio por cima do seu ombro. O Sr. Agostinho não conseguia acreditar naquilo!

Numa insana falta de noção e de pau feito dentro das calças, pegou em Rosália e levou-a para o armazém. De vestidinho cor-de-rosa – leve, curto e com alças finas –, Rosália foi empurrada, com o ventre para cima duns caixotes, e, sem delongas, estava quase a ser penetrada por um velho tresloucado quando lhe disse com voz macia e harmoniosamente sedutora: «Quer comer-me o cuzinho, Sr. Agostinho?» O homem não podia mesmo acreditar no que ouvira! Nem era tarde, nem era cedo! Nunca tinha visto, nem sentido, um rabinho tão redondinho e espichado. «Que ricos vinte aninhos», dizia o homem a arfar. Rosália ria, agora menos inocente. «Quer na boquinha, Sr. Agostinho?» Agora é que o merceeiro se ia mandando ao ar! Nem as mais atrevidas que lhe tinham passado pelas mãos sugeririam tal coisa!

Rosália agachou-se perante um Sr. Agostinho baboso e de olhos a revirar. Agarrou no marsápio enrugado com mais de cinquenta anos, deu-lhe duas, três esgalhadelas e ZAU! Com a outra mão tinha tirado do decote uma faca de ponta e mola bem afiada.

Perplexo, num misto de dor e de espanto, o Sr. Agostinho perdeu as forças nas pernas e caiu, agarrou-se ao que lhe restava da pila, que esguichava sangue a bom esguichar, e berrava de boca bem aberta. Aproveitando isso mesmo, Rosália enfiou-lhe aquele bocado de carne rançosa na boca e espetou-lhe a faca várias vezes numa coxa para o imobilizar o máximo possível. Atirado ao chão, a gritar de agonia, Rosália, com a mesma arma, fez-lhe dois furos na garganta. O hediondo e abusador Sr. Agostinho ali ficaria até ao último gargarejar, afogado com o próprio sangue e sem meio caralho.

Rosália, lançando um último olhar àquela criatura que ela achava imunda e asquerosa, lavou as mãos no lavatório do armazém enquanto ouvia o moribundo a sufocar, arranjou-se como pôde, desamarrotando o vestido cor-de-rosa, e saiu daquele espaço escuro e cheio de humidade, quiçá com ratos e baratas. Depois de ter pegado em mais duas garrafas de vinho, como já tinha feito noutra ocasião, perto da porta de saída deu de caras com uma freguesa que lhe perguntou pelo Sr. Agostinho, pois não era hábito ele não estar junto à caixa registadora.

Rosália respondeu: «Espere um bocadinho. Pode ser que ele (se) venha rápido.»


(29/11/2024)

Da noção: como foder poeticamente

Nu e nua, que nem se lembram de tirar a roupa dos corpos já pegajosos do calor, ela pulou para cima da cama, de quatro, com cio, e esperou apenas breves segundos para ser invadida como nunca tinha sido.

Até esta união animalesca se concretizar, que sujou a moral mas que tornou os corpos em templos da sensação, passaram-se anos, horas de conversas a cortejar, a seduzir, a atrair. Semanas de orgasmos solitários foram a antevisão do inevitável.

Houve até encontros repentinos em que se disse, à fugida e com a coragem do álcool, «vamos foder?», e não se fodeu. Um caminho tortuoso, que tinha avidez pelo corpo como paisagem, se fez até à noite em que se fodeu poeticamente.

Nu e nua, que continuam sem se lembrarem de terem tirado a roupa dos corpos já pegajosos da ofensa às boas maneiras, ela pulou para cima da cama, de quatro, com cio, e mal teve de esperar para ser invadida como nunca tinha sido.

Uma investida, duas, três... Perdeu-se a conta de quantas vezes os corpos embateram, por dentro e por fora. Dois humanos aparentemente racionais que se tornaram em apaixonadas e ferozes bestas hedonistas e que se entregaram ao profano, só porque queriam foder um com o outro. Difícil dizer se se amavam, mas queriam-se. Se um faz trair e outro trai, faz dos dois traidores? O que importa? Não queriam saber das regras e das normas. Desejavam isto acima de todos os outros desejos, porque são dois seres de carne e osso, com espírito descontrolado, sedentos um pelo o outro – o que penetra e a que é penetrada, dois num só, com consentimento. E como se adoraram naqueles primeiros versos – ele em pé, por trás, forte, a agarrar com pujança uma anca deliciosa que se delineava por ali abaixo até duas nádegas perfeitas que formavam o portal de uma entrada suculenta no físico da mais desejada mulher; ela em cima de um altar, a ser idolatrada, de quatro, sem vergonha, a suspirar por cada vergastada prazerosa que estava a receber, não se culpava de nada e afogava-se cada vez mais nesta poesia que é foder.

Queriam, enfim, encarar-se. Em cima dele, olhos nos olhos, semicerrados. Dióxido de carbono a diluir-se nos escassos centímetros que separavam as bocas secas, que ofegavam, não por cansaço mas por mais daqueles versos tão facilmente rimados. Olhos fechados, gemido tímido porque alguém podia ouvir, cabeça levemente deixada cair para trás enquanto o resto do corpo cavalgava o cetro do amante.

As bocas estavam tão secas, ao contrário do que se passava lá em baixo – húmido, escorregadio. O que é prazer dentro do ventre, que faz gemer e arrepiar, sobe pelo corpo, por todas as células, até ao cérebro e torna-se tortura, só que ninguém quer admitir, até porque não é palpável, está e deixa-se estar nos confins do não-consciente – não se pensa, mas existe. O prazer da ereção máscula e imponente a acariciar o interior de veludo da musa combate a tortura invisível que é o medo disto tudo acabar – e acabará. Um deles vai fazer com que isto acabe. Talvez os dois ao mesmo tempo, como uma trégua aceite depois de uma refrega sangrenta à lei da espada. Só que este banho não foi de sangue – foi de uma imoralidade que, naquele momento, não lhes causou qualquer receio ou prejuízo.

Não havia saliva suficiente para um beijo, tamanha a temperatura que se tinha instalado, mas não foi por isso que deixaram de tocar línguas. E olhavam-se tanto como nunca se tinham olhado. E quando os olhos faiscavam, ele pegava-lhe na cara de expressões embriagadas com a mão vinda de baixo, pelo pescoço e pelo queixo, e beijava-a, e gemiam, e contorciam-se, sempre ligados, sem nunca se desprenderem um do outro.

Os seios dela são uma ode à perfeição, uma poesia fascinante que até é sacrílego transpor em palavras. Redondos, grandes e robustos, deslumbrantes, dignos da Grécia dos deuses, são coroados por diamantados mamilos eretos que, como um farol, guiam a boca e os lábios do usurpador, que aspira nunca perdê-los de vista e do toque. A beleza em estado puro – tão simples e direto quanto isto.

Foderam-se um ao outro. Nunca tinha sido tão bom. Nunca será tão bom. Acariciaram-se, tocaram-se, trocaram fluidos de matéria violada pela decisão pecaminosa que tomaram, morderam-se, pisaram-se até – de verso em verso transformaram-se em luxo monumental.

E o gáudio atingiria o fim. Preferiam ter ficado ali, naqueles propósitos, para sempre, mas era impossível. Somos homens e mulheres, por vezes bichos indomáveis, com limites corpóreos que necessitam de água e descanso – quem nos dera alimentarmos o físico com o éter, e assim podermos escrever um poema infinito.

Não queriam, mas tinham de se separar. Não é possível viver-se numa espécie de cordão umbilical, muito menos quando não se trata de mãe e filho, mas de um par de fornicadores, ainda que, por momentos, simbióticos.

Explodiram num êxtase único, como se tivessem criado, não um, mas vários universos de luz ofuscante que cega qualquer mortal incauto e ignorante de tal comunhão. Tudo tremeu, e os alicerces, que são as pernas e os braços, ficaram em ruínas. As mentes estavam feitas em pó cintilante, enquanto os sexos pingavam o néctar por eles produzido e expelido em exultação.

Amainaram e, como feras amedrontadas e fustigadas pela adrenalina, encolheram-se ainda juntos. As últimas linhas, agora mais desbotadas, estavam assim a ser escritas. Enfrentaram a realidade – ele, a deslizar, saiu de dentro dela, e ela, exasperadamente satisfeita, deixou que ele saísse. De novo erguidos, saciados por e com um sentimento de inculpável transgressão cumprida, enrolaram os papiros, que são os seus corpos, em proteções de algodão e guardaram esta poesia herética em cofres profundos, onde se protege a luxúria infindável, a perversão aliciante, a traição dos bons costumes e o prazer eterno.

Tal poesia nunca poderá ser reproduzida, e por isso ficamos pela prosa de pouco talento e pouca riqueza. Mas que fiques a saber: foi poético.


(01/11/2024)

O morto-vivo de Ílhavo

(adaptação baseada num texto publicado em 1922,
sobre uma estória de 1856)


Corria o ano de 1856, e, reinando D. Pedro V, corria também pelo país a cólera-morbus, que atacava, sem parcialidade, novos, adultos e velhos com cãibras, diarreia e vómitos fortes. Desenvolvendo-se em Lisboa, a região norte e centro virada para o mar também teve a sua quota-parte de pestilência, de Viana do Castelo à Figueira da Foz.

Ílhavo, terra de homens que pescam no mar o sustento ou a morte e de mulheres que amanham em terra o peixe ou a sepultura no peito dos que lá ficam entre ondas e redes, não escapou ao terrível flagelo que dizimou centenas de criaturas. Sem escolher especificamente entre jovens e velhos, ricos e pobres, pescadores e agricultores, a mortandade espalhou-se com um terror e um desânimo profundo que ia, surpreendentemente, abalando as almas fortes dos ílhavos.

À doença, já por si calamitosa, juntou-se a fome que redobrou a aflição e a angústia, causando, nas gentes ribeirinhas, coletivos e abafados suspiros de desalentada esperança. Os barcos-do-mar imobilizaram-se, porque os braços que remavam e puxavam as redes quase não se viam a trabalhar ou a acenar no regresso à praia. Esses braços, fortes e morenos, salpicados pelo salitre, estavam agora pendurados no rebordo de padiolas ou estirados em denegridos caixões. Havia ainda os que, já desolados pelos sintomas, com medo de serem acusados de cobardia, se faziam ao mar na mesma, para, no pico da fraqueza, simplesmente baldearem da embarcação. «Ó Zé, agarra a corda, home!» Muitas vezes, o mar nem estava assustadoramente bravo e salvar-se-ia, com relativa facilidade nessas condições, um pescador forte e obstinado como o Zé, ou outros. O que os companheiros não sabiam é que o Zé – e outros, para não serem enxovalhados pelos veteranos ou ameaçados pelos arrais mais atrozes –, foi ao mar sob agudas fisgadas que lhe perfuravam a barriga sem ferida e sangue aparentes. Caídos às águas, deixavam-se afundar, sem luta. A boina a boiar era o que, por mais uns minutos, sobrava do desafortunado. E depois, só mar. Remava-se de volta ao areal em silêncio sepulcral, ouvindo-se apenas a marejada e o ranger dos remos. Os que o mar não levava, lutavam em terra – e cediam, por fim, estrebuchando até à morte.

Aquele junho, que costumava antever o verão quente de julho e as romarias de todas as Nossas Senhoras de agosto e setembro, era um mês de ceifa humana. As gosmas dos moribundos subiam-lhes pelas gargantas até às bocas em vómitos esverdeados com um cheiro nauseabundo. Quem não sufocava com a lama viscosa vinda das entranhas, sobrevivia mais um bocado com o peito a arder de tanto tossir e escarrar com a ajuda da heroica e magnânima Leocádia Ferraz, que ia auxiliando os atacados com sucessivas abluções de água a ferver.

Na casa que viria a ser do senhor Cartaxo, na Rua Direita, improvisou-se um pequeno e humilde hospital para onde traziam os desgraçados sem família. Muita dor se mitigou ali, muitos doentes morreram a ouvir palavras de esperança e sentido carinho. «O seu filho está a vir do Brasil, tenha calma.» «Claro que vai voltar a ver o mar, agora descanse um pouco.» «Nosso Senhor Jesus dos Navegantes não a vai abandonar.» Havia quem já nem ouvisse a frase completa.

Para os lados da Costa Nova, a noite ia alta, assim como os ais e os roncos de desespero que ecoavam pelas sombrias vielas dos palheiros. Quando não havia berros e choros, de doença ou de perda, ouviam-se vozes mais serenas e passos apressados de pescadores valentes que carregavam para as bateiras os corpos mortos dos flagelados, a fim de os transportar para a outra margem, onde ficam as Gafanhas e o cemitério de Ílhavo. Já indiferentes e automatizados pela tarefa, os homens firmavam os seus pés no ventre dos cadáveres empilhados para a remada ser mais forte. Tamanha era a descarga de força que, várias vezes, os corpos – uns ainda moles, outros mais hirtos – rebolavam para cima dos vivos a remar ou borda fora. Os que estavam mais no fundo da pilha assustavam quando, do nada, esgazeavam os olhos mortiços e nublados.

Com os pés na areia, seja a da Costa Nova ou das Gafanhas, o padre Fernando, tido pela comunidade como um santo levita, há muitos dias que não tirava a sotaina e o sobrepeliz, pois andava de povoação em povoação, fosse dia ou fosse noite, sem descanso, a abeirar-se dos doentes, a confessar este e a consolar aquela.

A 30 de junho, pela meia noite, viu-se a si mesmo no sul da Costa Nova, num miserável palheiro, a afagar com orações um pescador às portas da morte. A hora era já adiantada quando o antigo marítimo, com voz fraca, humildemente balbuciou: «Adeus, senhor padre Fernando...» E morreu.

De pé, no topo das dunas, o padre Fernando era uma estaca. A batina dançava, flutuava, livremente à sua volta por causa da aragem branda que vinha do sul, perfumada de maresia. Virado para o mar – que não não via, mas que sentia através da audição e pelas narinas –, tinha os olhos rasos de água e o coração oprimido. Com tristeza, mas ainda com mais fé, elevava a Deus os seus pensamentos, implorando a misericórdia da Senhora da Saúde, que, como cria o padre Fernando, nos céus velava a sua Costa Nova. E chorava a bom chorar, sozinho e sem timidez.

Subitamente, vindo do fundo, um barulho brusco cortou o silêncio – só ouvir as ondas também é estar em silêncio – e sacudiu a postura estoica do sacerdote. Numa correria trágica e rápida, esquecendo as lágrimas, salgadas como o mar que evaporavam da face, desceu a ladeira e travou à beira da luz duma candeia de azeite. Dois homens rodeavam um pestilento. Um amarelo de bílis escorria-lhe pelos cantos da boca ressequida pela febre. Suava muito. Num último ato de bondade, o padre Fernando sentou-se no chão e colocou a parte superior do corpo do doente no seu regaço, como se de um bebé se tratasse. Depois de ter respirado muito fundo e estremecido, a cabeça do enfermo tombou. «Levem-no, que está morto», disse o padre.

Os outros dois homens pegaram no defunto e levaram-no para a bateira mais próxima. Remaram para o outro lado da margem e, na Gafanha, já na zona da Mota, transladaram o morto para uma padiola. Um à frente e outro atrás, carregaram o corpo pelo antigo caminho de areia em direção a Ílhavo.

Os dois vivos, atrevidos pescadores labregos que pouco conheciam da sua própria terra, caminhavam silenciosos e abatidos em contraste com as extraordinárias façanhas que operavam no mar e que tantas vezes encorajou a ralé. Em cima dos possantes ombros, a maca rudimentar tremia e fez com que o morto se revirasse, descaindo-lhe uma das pernas. Para aliviar o fardo, pararam junto a uma mouteira de tramagueiras. Ambos fizeram um cigarro e, ao acendê-los, iluminaram sem intenção o rosto do morto.

«Parece que o homem abriu os olhos», disse um, ao que o outro respondeu: «Qual abriu nem meio abriu! Tu não ouviste o senhor padre dizer “levem-no, que está morto”? Antão está. Pega que se faz tarde, são duas horas.» «Põe-lhe a perna para cima», ordenou o primeiro.

Ergueram a padiola e continuaram a caminhar, atirando para o ar prolongadas fumaças dos cigarros que ainda duravam. Pesadas nuvens, que pareciam feitas dum negro veludo, encobriam um raquítico luar que, quando aparecia, esbatia a figura do morto na areia branca das dunas. Voavam aves agoirentas, chegavam rumores do mar, como alguém a gemer, mas nem uma casa ou uma luz se via, muito menos gente. Caminharam mais, a modos que sem rumo, pisando o solo, pé ante pé, com temor, através de um carreiro duvidoso até serem primeiro alarmados e depois paralisados pelo sino que dava meia hora para as três da madrugada. Estavam, sem saber, junto à ponte Juncal. Do outro lado, Ílhavo.

Passaram a ponte e seguiram pelo estreito e delgado caminho da Barquinha, descendo depois o pequeno declive do Outeiro. Numa encruzilhada, viram-se novamente indecisos, sem saber por onde ir. «Ó que diacho! Qual será o caminho pró cemitério?»

Erguendo a cabeça na escuridão e apontando com a mão direita, o morto respondeu: «Quando eu era vivo ia por aqui, agora que sou morto, levem-me por onde quiserem!» E levaram, sem ais nem uis, seguindo a indicação do morto com vida…

Encontrado o cemitério, aí se abriam profundas covas, como é costume em tempo de epidemia. Numa espécie de vala comum, sepultavam-se três, quatro ou mais cadáveres. Trabalhava-se todo o dia e toda a noite.

O homem da padiola que os dois pescadores da Costa Nova julgavam morto, mesmo depois de ter falado, foi estendido num robusto caixão de pinho e este lançado para uma sepultura onde já se encontravam outros dois. E nem uma lágrima, nem sequer uma reza. Só trabalho.

O coveiro, um tisnado e forte adulto rapagão, a quem a cólera parece não ter atingido, atirou-se à enxada e começou a lançar pazadas de terra vermelha, em contraste com a areia clara das praias ali tão perto, para cima dos caixões. A manhã rompia quando o coveiro alisava a campa improvisada. Retirou-se. Exausto, atirou-se para cima duma velha lousa, que certamente iria ser usada para tapar uma sepultura mais requintada, e adormeceu.

Tinham passado quinze dias, e a cólera tendia a desaparecer. O povo ilhavense, agora mais animado, juntava-se no adro da igreja a dizer preces e louvores em direção ao céu, agradecendo as melhorias ou a pedir que isto não voltasse a acontecer. Dali seguiam para o cemitério, para se chorar a perda dos entes queridos. Muitas pessoas não encontravam as sepulturas dos que muito amaram devido à quantidade de inumações desorganizadas que tinham acontecido nos últimos tempos, o que redobrava de amargura a sua profunda dor.

Entretanto, o coveiro-vígia, no cemitério em permanência, vinha notando há dias que, da cova onde se enterrou o da padiola, surdia por vezes um ruído vago e estranho, como um som de assobio fraco, à semelhança do sibilar do vento em ciprestes. «Que diabo seria aquilo?», cismava, franzindo a testa.

Certa manhã, a sua curiosidade já demasiado espicaçada, levou-o ao local em concreto. Deitou-se de bruços sobre o coval e colou o ouvido à terra. Agora, depois do cisma, não lhe restavam dúvidas: alguém falava baixinho. E ouvia soquear em tábua.

«Quem quer que seja, está aos murros no caixão», pensou o coveiro-vígia. E, de repente, com vigor, o morto gritou: «Eh gente! Eh de cima!» O coveiro deu um salto, tomou ar com o sobressalto, os cabelos ficaram eriçados como a rama de vassoura e, atirando o chapéu com violência, tornou a deitar-se, encostando o ouvido ao chão e berrando assim:«Eh de baixo! Quem chama é gente, ó quê?!»

«Eh! Jaquim Salimo, sou eu, homem! Então eu fico aqui eternamente?! Olha que já se me acabou hoje a broa de pão que trazia no bolso!», respondeu o morto, que afinal estava vivo.

Sem mais palavras, o de cima, vivaço e com pressa, pegou na enxada e, com a fúria de um leão ferido, começou a cavar até chegar à tábua. Nervosamente, com o olho da enxada deu tamanha pancada no caixão que as tábuas superiores saltaram em bocados.

Vagarosamente, pachorrentamente, o suposto morto esfregou os olhos, saltou dum pulo para cima e, agarrando-se ao Salimo, deu-lhe tal esticão às costelas que este, aflito e sem ar, resmungou: «Eh ti Salvador, parece que nem esteve quinze dias sem comer! Anda daí beber um quarteirão de aguardente, homem!»

E lá foram os dois, de braço dado, para a loja da ti Calçoa.

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Nota

O texto original (que não este – já lá vamos), assinado simplesmente por Jorge Manuel, foi publicado na edição de 14 de maio de 1922 do jornal “O Ilhavense”, sendo escrito em post-scriptum que “correu fama este facto” do morto-vivo e “houve nesse tempo quem risse e quem chorasse”. Sabe-se também que no ano da publicação, 66 anos depois da suposta ressurreição, ainda existia a casa onde habitou o ti Salvador, precisamente na Viela do Salvador, em Ílhavo. Após breve pesquisa toponímica, podemos dizer quase com certeza que o nome da viela, localizada perpendicularmente à Rua Serpa Pinto, nada tem a ver com o ti Salvador, existindo pelo menos desde o Séc. XVIII. Sabe-se ainda que a casa do morto-vivo ficava em frente à antiga habitação das tias Angélicas.

Terra de muitas histórias sobre o mar – umas escritas, outras transmitidas oralmente –, esta do morto-vivo contrasta com essa corrente, sendo uma das poucas lendas, ou estórias para ser mais correto, relacionadas ao terror e que está publicada de qualquer forma, neste caso num jornal.

Amante deste tipo de historietas, usando muito disto como inspiração para os meus livros anteriormente editados, decidi pegar no texto original e, sem mudar o rumo do enredo, dar-lhe mais corpo num formato mais livre que não esteja encurralado no espaço que uma página de jornal permite. Se me julgo no direito de o fazer, esse é outro assunto que penso não arreliar ninguém, muito menos os meus conterrâneos ilhavenses, que são, ainda assim e muitas vezes, propensos a arreliações imaturas.

No fundo, este é um exercício de adaptação que há muito desejava fazer. Tomei a liberdade de adicionar alguns momentos de ação ou de paisagem emocional, assim como também pretendi utilizar expressões e estruturas frásicas presentes no texto original. Pensei até em aumentar o final, deixando no ar, por iniciativa própria, que hoje, em 2024 e nos anos vindouros, ainda se ouve o ti Salvador a andar pela viela, a rir-se da sua ressurreição e talvez a enxotar a morte, a gozar com ela. O que é certo é que, apesar de alguma piada que isso poderia trazer, não é o que se conta por Ílhavo; portanto preferi ser mais tradicional em relação ao escrito de 1922 e deixar como está, com um final infantil e patético, não no sentido da estupidez mas no da inocência e sem maldade – afinal, alguém morreu, ressuscitou ao fim de quinze dias e, sem perguntas, segue-se para a loja da ti Calçoa emborcar uma aguardente.

Por fim, acho também fascinante como o relato começa pesaroso e termina comicamente, como se isto fosse uma alegoria aos tempos conturbados da cólera que atacou no Séc. XIX, como se esta lenda, ou estória, fosse naquela altura o #VaiFicarTudoBem dos nossos tempos.


(19/09/2024)