Estou velho. Nem sei se estou
cansado do corpo ou da vida. Os meus cabelos são brancos e raros, as
minhas pernas custam a mexer e os joelhos chiam como dobradiças
enguiçadas, os meus braços tornaram-se finos como palitos, as
minhas mãos são o dobro do tamanho do que deviam ser, cheias de
calos nos dedos e nas palmas, as unhas crescem grossas mas acabam por
se partir como palha seca. A minha respiração é calma, mas está
longe de me trazer serenidade. Custa-me ter os olhos abertos, mas
quando os fecho vejo coisas que não quero recordar. A visão
romântica do mar e nele navegar é uma mentira. É uma prisão, uma
desgraceira, uma imundice, uma incerteza. A minha pele é tão rija,
tão áspera e tão adusta que não há sol que me faça mais
enegrecido. Mas não é só por fora que estou chamuscado.
Estou
tão velho e tão cansado. Mereço descansar. Enfrentei ventos
selvagens e nevoeiros espessos como nunca sentirão em terra firme, e
convivi com homens desajustados, ignorantes, brutos. Pergunto-me como
sobrevivi durante tanto tempo. Combati ondas gigantes que me queriam
engolir, sugar e desfazer, mas foram sempre essas ondas traiçoeiras
que me trouxeram de volta. E sempre que tentei deixar-me ir,
regressei. Pergunto-me porquê.
Vi
ir embora quem talvez merecesse menos do que eu. Como naquele dia em
que um marujo ainda muito verde foi pela primeira vez arreado à
água, no seu pequeno dóri. Maldito dia, o mar não estava para
brincadeiras e para pouca experiência. Mas ele lá tinha de ir. O
homem responsável pelo rapazito estava muito doente, a ferver em
febres alucinantes no seu beliche. Era um homem tão grande e forte
que o cubículo onde dormia era pequeno demais para tamanho porte. A
doença derreteu-o em poucos dias, sem nunca saber o que tinha
ocorrido lá fora, na labuta ingrata. E lá tinha de ir o receoso
protegido na sua vez, naquele dia em que o mar rugia, ferozmente
suplicante, por oferendas. Já me esqueci do nome do moço e também
não o quero lembrar, mesmo que fosse capaz. Tão verde e imaturo,
uma pena. São estas coisas que vejo quando fecho os olhos. Também
fui descido ao mar nessa hora matutina. Não havia ponta de sol, era
uma noite de dia, as nuvens estavam cinzentas e carregadas, o mar
compacto batia nos nossos botes e desintegrava-se em gotas que nos
feriam a cara, como minúsculas pedras aguçadas. Tentei abeirar-me o
máximo que podia do infeliz, mas nada a fazer contra correntes e
vagas com uma vontade tão própria e singular que nunca iremos
compreender. Cada pescador foi levado para onde não pretendia. Era
um dia de sorte ou de azar, não havia talento que prevalecesse.
Também eu fui arrastado para outras bandas, afastado do moço. Ao
longe via as ondas a crescer. Eram escuras, mais escuras do que as
nuvens que tapavam o firmamento, e no cume uma espuma branca e
espessa coroava o marchar da morte. Cada vaga daquelas trazia um
carimbo de mortandade, um selo invisível que vinha já a marcar o
seu destinatário, só não sabíamos qual de nós seria virado e
engolido. Nunca deveríamos ter ido ao mar naquele dia, mas o porão
estava tão vazio que o capitão preferiu a sua honra e a do armador
em terra descansado do que a vida dos seus homens. Não foi preciso
muito tempo até o alarme soar para que regressássemos. Foi tudo tão
rápido que nenhum homem tinha lançado sequer a linha à água, mas
foi o suficiente para o desastre acontecer. O verde marujo foi levado
para longe de mim, de nós. Os mais fortes e experientes remaram
contra tudo o que se lhes opunha, e, por entre façanhas e atos de
puro instinto de sobrevivência, por entre crenças e derradeira
expiação de pecados, todos os veteranos, eu incluído, se acercaram
do navio-mãe. Todos menos o moço. As ondas que me trouxeram de
volta foram as mesmas que, ao separarem-se de mim, se viraram para ir
de encontro ao rapaz que mais não regressaria. Metro a metro, ora o
víamos na crista de uma vaga, ora o perdíamos da visão quando se
formava um vale líquido entre as ondas revoltadas, como colinas.
Gritámos para que remasse. Gritámos sem parar, mesmo sabendo que
não nos ouviria, pois já estava no centro da tempestade, mas
continuámos a chamar por ele, por um nome que esqueci. Até que a
maior onda que alguma vez vi se ergueu de rompante em direção ao
céu e desceu impactante contra o desgraçado que nem um bacalhau
teve a felicidade de pescar, virando-lhe o dóri, destruindo-lhe a
madeira do casco e dos remos, esmagando-o como se duas paredes se
fechassem uma na outra. As ondas que me trazem de volta são aquelas
que levam outros para uma eternidade que ainda desconheço. E é por
isso que nunca quero fechar os olhos, por mais que me custe, porque
são estas as coisas que vejo. Dizia-se que tinha deixado uma
namoradinha em terra, à sua espera. Ouvi-o uma vez dizer que se ia
casar em breve e encher a casa de filhos para ser feliz sempre que
regressasse. Nem uma carta escreveu, porque não sabia escrever e não
queria que escrevessem por ele, mas tinha sonhos. Tão ingénuo. Hoje
está com o mar, e os filhos que não deixou são a sua solitária
companhia para sempre. E quando não fecho os olhos, pois não quero
rever todas estas coisas, é o som do mar, porque nunca saí de perto
dele, que teima em trazer de volta estas memórias.
Sempre
que peço para ir-me daqui, deste plano feito de areia ou de chão
firme que nunca balança, as ondas que teimam em fazer-me regressar
trazem ao pensamento outro homem do qual o nome também já se me
esfumou. Este escravo da água salgada também tinha sonhos, mas não
eram desejos, eram imagens em movimento que o subconsciente produzia
enquanto passava pelo sono nas poucas horas que podia dormir. E é de
um sonho muito particular que se trata esta recordação. Quando
fecho os olhos de cansaço, imagino aquele sonho que ele nos tinha
contado certa manhã antes de sermos arreados ao manto de água.
Contou-nos então que tinha acordado muito sereno por causa do sonho
que teve, uma perceção muito vívida de que caminhava livremente no
fundo do mar ao lado dos dois filhos. Disse-o com uma tranquilidade
tão pura como nunca lhe tínhamos visto ou ouvido. E foi tão
estranho vindo de um homem efusivamente aguerrido e pouco dado a
sentimentos. Nunca falava dos filhos, nem da terra que o viu nascer,
da qual eu nunca soube qual era. Remava como ninguém, era quem ia
para mais longe, e a sua voz era, por vezes, mais altiva do que o
assobio cortante de ventos que aterrorizam. Vimo-lo, certa vez, a
erguer-se no seu dóri, de braços abertos, virado para uma onda que
se formava contra ele. Desafiou os deuses do mar e venceu. Aquela
vaga, que iria atingir uma altura tenebrosa, tão depressa se esticou
ao alto como desvaneceu perante tal espetáculo de um só homem
contra a natureza. No regresso ao navio-mãe, o excelente pescador e
remador ria com desdém, sem medo, mostrando aos outros como se
fazia, como se combatia o incombatível. Mas naquela manhã, quando
nos contou o sonho, toda aquela casca rija se tinha tornado numa fina
camada de manteiga derretida. Era dia de mar calmo, uma planície
autêntica, nem uma nuvem se vislumbrava, a pescaria seria boa. Fomos
arreados, cada um na sua vez e a soltar vivas uns aos outros sobre um
dia que iria ser de grande sucesso. Passado um par de horas, um
repentino e denso nevoeiro assolou aquele banco de pesca. O mar
continuou manso, mas a neblina era tão cerrada que não se via um
palmo à frente dos olhos. A ronca do navio soou imediatamente e
todos regressámos conforme pudemos, através do instinto mais básico
da audição. Todos, menos o homem mais bravo que alguma vez vira.
Não sabemos como, nem porquê, nem por quem, mas foi abocanhado pelo
nevoeiro. Desapareceu sem deixar rasto, nem o seu búzio se ouviu, se
é que fez uso dele. À medida que nos íamos aproximando do som da
ronca, o nevoeiro foi levantando e ali estávamos todos, devolvidos à
ténue segurança do navio-mãe, por ondas que teimam em trazer-me de
volta. Todos menos aquela alma dura em corpo ainda mais duro. Nem
homem, nem bote. Nada. E quando fecho os olhos, vejo-o a caminhar
livremente no fundo do mar com os dois filhos. Passado dois dias,
atracámos numa pequena povoação portuária e havia um telegrama
endereçado ao desaparecido. Leu-nos o capitão sobre os dois filhos
do sonhador. Tinham morrido tuberculosos. O mar lá sabe o que faz,
tanto sobre os que leva como sobre os que faz regressar, como eu, que
não consigo ser mais teimoso do que as ondas que me trazem sempre de
volta.
Estou
exausto, mas as ondas que insistiram em trazer-me de volta continuam
a trazer-me também lembranças. Gostava de me recordar de quentes
momentos de paz e despreocupação, mas o baque dessas ondas é tão
retumbante que é impossível fugir a memórias de desventura. Quando
fecho os olhos no preciso instante em que uma onda rebenta, relembro
um desalmado caído em desgraça. Também já não me lembro do seu
verdadeiro nome, só das palavras maldosas com que o tratavam. Ora
era o cornudo porque se dizia que a mulher se deleitava de prazeres
com outros homens em terra enquanto este sofria e mal suportava as
escoriações interiores e exteriores da faina, ora era o manco
porque, certa ocasião, ficou com uma perna horrivelmente presa entre
o remo e a borda do dóri, ora era o tolinho porque falava sozinho e
nada do que dizia se percebia. Tinha-se tornado numa sombra desbotada
do homem robusto, digno e decisivo que tinha sido noutros tempos. Era
penoso vê-lo regressar com pouca pescaria, era doloroso ouvir o que
diziam dele, tanto na sua frente como, pior ainda, nas suas costas. É
incrivelmente triste ver o que o mar é capaz de fazer a alguns
homens, tanto os que se tornam vis e mesquinhos seres como os que
agoniam com isso. Gozado por quase todos, o seu olhar de viés
perante o que ouvia foi-se tornando cada vez mais ominoso e as
palavras que dizia baixinho para si mesmo eram cada vez mais
impercetíveis. As ondas que me traziam de volta, com o bote cheio, a
transbordar de bacalhau, eram as mesmas ondas que o faziam regressar
a ver-se o fundo da sua minúscula embarcação, sem quase nenhum
peixe. Ainda hoje não aguento tamanha pena, mesmo tão velho e
distante daqueles dias. A minha velhice e cansaço em nada amainam
esse sentimento. Havia de ser deixado em terra, em qualquer porto,
deixado à sua sorte, longe de casa, porque para a faina já não
servia, era o que se dizia na sua cara nas poucas horas de convívio
enquanto se comia e bebia o que dava para comer e beber antes de se
dormir o pouco que dava para dormir. Num dia de mar bravo e de chuva
copiosa, as ondas trouxeram-me de volta com uma considerável
pescaria dadas as circunstâncias, ao contrário do desafortunado,
sem um único bacalhau. Estava mais do que visto que tal ia
acontecer, fosse mais tarde ou fosse mais cedo, calhou ser naquele
dia. O desalentado foi alvo do maior gozo de sempre, mas, por entre
todas as maledicências, havia dois tripulantes, com nomes que não
interessam por causa de conspurcarem a honra humana diariamente, que
ultrapassavam todos os limites, para lá de cornudo, manco ou
tolinho. O desorientado, a ouvir aquilo tudo, depois de horas a fio
no mar, isolado no seu dóri, a mandar linha e anzol atrás de linha
e anzol e a nada tirar do fundo daquelas geladas águas, armado com
uma longa e afiada faca de escalar, atirou-se a um dos seus rivais
sem que este estivesse à espera. Lembro-me bem, porque as ondas
continuam a trazer-me de volta todos os segundos passados naquela
horrível vida, quando aquele homem, agora magro, a definhar, se
lançou às costas do inimigo, desferindo-lhe um golpe profundo na
garganta. O outro maldizente, mesmo ao lado, agarrou o esfaqueador,
empurrou-o para o chão e, no meio da confusão instalada, por entre
pés e braços que depressa se misturaram para acabar com o
incidente, tropeçou, caindo em cima do corpo do adversário.
Enquanto o ferido estrebuchava no chão do convés, a revirar os
olhos e a jorrar sangue negro pelo lado direito da garganta, como
quem diz, a dar as últimas, o companheiro, que o defendeu tarde
demais, batia, com pesados murros, no atacante, mas cada vez menos,
com menor preponderância e energia. Enquanto todos os outros
marinheiros debatiam sem se perceber nada e quase se agrediam, ou
outros que se abeiravam do esfaqueado, enquanto o capitão mirava de
cima, desde a casa do leme, enquanto tudo e mais alguma coisa que se
reaviva em mim através das ondas que batem na areia e me trazem tudo
de volta, a força daqueles murros tornou-se nula. É que o gozão
não só caiu em cima do desastrado a quem chamavam cornudo, manco e
tolo, como também caiu, de peito aberto, na ponta aguçada da faca
que se enterrou em si. Foi nesse preciso momento que o capitão e o
seu imediato acabaram com a bagunça através gritos de ordem e
arremesso de corpos enfurecidos com olhos esbugalhados de lágrimas
raivosas e com ânsias de voltar a casa. E foi também aí que
percebi, como tão bem recordo quando fecho os olhos, que aquele
desafortunado homem tinha assassinado os seus dois constantes
perseguidores quando esforçadamente saiu debaixo daquele peso viril.
Nas mãos já não tinha a faca, nas mãos tinha o sangue de dois
outrora companheiros de todas as horas. Tentou limpar essas mesmas
mãos, que tantas linhas e anzóis lançou ao mar, à sua camisola
preta e grossa de gola alta, mas aquele líquido espesso e vermelho
não se descolou da pele. Desorientado, a chorar e a pedir perdão,
todos os tripulantes o olharam com perplexidade. Rodeado por homens
que se estavam a transformar em animais irracionais, foi pé ante pé,
para trás, que devagar se aproximou dos limites do navio para num
ápice de desespero se mandar a si próprio borda fora. Aquelas
ondas, que se obstinam a trazer-me de volta, levaram consigo, para
intermináveis fundos, um desgostoso miserável que me aparece na
memória sempre que, contra a vontade, fecho os olhos de cansaço.
Não
sei a minha idade, só sei que estou velho e cansado. Se calhar tenho
trezentos anos e trezentas mil ondas teimaram em trazer-me de volta.
Não sei como e por que é que sobrevivi tantas vezes e tantos anos.
Pergunto-me porquê. Há quem diga que sou um sábio, mas renego.
Julgo até ser tão desajustado, ignorante e bruto como os outros. O
engenho de marujo perseverante já não está em mim, apenas acerto
aqui e ali nas horas consoante a posição do sol, sei dizer o nome
de um ou outro astro e pouco mais. Estou velho e cansado, e
simplesmente não me deixam ir embora. Sim, as ondas, essas mesmo. Se
calhar ando há duzentos anos a contar as mesmas histórias que quero
esquecer e não sou capaz, porque é quando fecho os olhos para
morrer que elas se reavivam com mordaz afinco, e, assim, duzentas mil
ondas teimam em trazer-me de volta sempre que me lanço ao mar, que
é, enfim, a minha verdadeira casa.
(05/03/2025)