Cair,
levantar, antecipar, alucinar – repetição.
Ninguém
quer saber.
É um horror
cerebral pensarmos que não nos lembramos de nada antes de nascermos
– nem mesmo dos primeiros anos em que já respiramos e choramos por
leite materno enquanto as primeiras cores, agora esquecidas, nos
invadem os olhos – e temermos para onde poderemos ir quando
cessarmos a nossa existência física. Pois que não tenhamos receio –
será igual depois ao que foi antes: oco, vazio, inerte, indolor,
nada.
O pesadelo do Ser, pelos jardins do
sofrimento, da mágoa e da angústia, é aqui e agora, à medida que
envelhecemos com ataques de fúria e ansiedade a funcionarem como uma
ignição para um estado de alerta constante que nos enlouquece em
noites de insónia tão inebriantes quanto horripilantes.
Aí, envolvidos numa redoma de
obsidiana opaca e brilhante, sofremos por antecipação e alucinamos
com pensamentos sobre momentos que ainda não aconteceram e que podem
muito bem nem vir a acontecer – e não dormimos. E quando
adormecemos, atacam-nos sonhos vívidos que nos sufocam deste lado da
realidade.
Aí, estamos numa ara de sacrifício
instalada no centro de uma caótica cidade isolada, toda ela
iluminada por premonições incontroláveis e abjetas que se estendem
ao infinito, de pescoço descoberto, prontos a receber o derradeiro
golpe que, afinal, não passa de autocomiseração.
É, pois, um encarceramento
interdimensional na mesma dimensão – somos um só em vários
estados. Depois de encerradas, contra a vontade, as cerimónias do
vitimismo, é também aí que invocamos fogo e vingança, sentados
num abominável trono feito de agonia autoinfligida. A farsa de
imaginarmos que somos adorados e que lideramos é tão profanamente
sedutora que achamos que podemos deixar de ser o cordeiro sacrificial
para sermos o governo categórico daquela cidade e as suas muralhas
intransponíveis.
Absorvidos pela destituição do que é
social e sensato, somos – sejamos honestos – uns excitados
invisuais a caminhar de pés nus e vestidos de lágrimas e cicatrizes
– mas a rir como incautos diabretes. Somos, enfim, a manifestação
de um purgatório a nós próprios imposto que se situa no deserto de
uma irracionalidade perigosa e com reduzida transparência.
Neste pesadelo do Ser, que vivemos em
inestimado júbilo, há fantasmas dentro de nós que nos corroem como
cancro, deixando-nos num ininterrupto estado de pré-destruição iminente – o paradoxo da calma com o pânico, ou vice-versa, de que
isto só vai doer uma vez. E desvairados ou mais serenos, acordados
ou dormentes, há sempre uma necessidade de caça – umas vezes
furtiva, outras a céu aberto –, atrás de algo que, em mais
ocasiões do que menos, nem sabemos bem do que se trata.
A obsidiana começa a desfazer-se e de
dentro dela saímos confusos, mas com manias de assertividade e
ponderação que não se materializam, porque são apenas aquilo
mesmo: manias. Enfarruscados, sem uma gota de água pura que nos
lave, somos como uma pedra de carvão com formas irregulares. Por
baixo dessa derme imunda há poros que tentam expulsar segredos, em
busca de redenção e leveza. Eventualmente, quebramos essa camada de
sujidade para mostrarmos aquilo que realmente somos: carne corrompida
e desalmada.
Podia ser um momento de contornos
bíblicos, mas não é, desculpem – é apenas corrupção com
pernas e braços. Ainda assim, perdidos em pensamentos imprudentes
durante noites de olhos abertos na escuridão, deparamo-nos, quiçá
sonâmbulos, com um pontinho luminoso que, ironicamente, representa
isto: a lógica é apenas uma longínqua contemplação.
Como ruínas, não vivemos –
deixamo-nos viver. O pessimismo, o pesadelo do Ser, é – porque achamos que haverá sempre mais um dia para tentarmos o bem e a sua reciprocidade
– o último refúgio da esperança.
E assim entramos no eterno inverno da
Razão: uma paisagem terrena e carnal de nos próprios, que nos
projeta, quer queiramos ou não, a insignificância primordial sobre
a nossa condição passageira. Cá dentro, mesmo no centro do peito,
está a palpitante presença da morte, um testemunho da nossa
futilidade e redundância.
Egoístas, invejosos, mesquinhos,
concentrados no nosso âmago, nas nossas ansiedades e tristezas,
afogados em álcool, engasgados em medicamentos e falsamente
protegidos por impostores sorrisos, colocamo-nos num alto pedestal
que diz, na base, “eu sofro mais do que todos”, para cairmos,
todos os dias, sempre que subimos ao pedestal, em valas comuns
entupidas com cadáveres que têm a nossa cara.
Cair, levantar, antecipar, alucinar –
repetição. Ninguém quer saber.
Os cenários provocados pela
antecipação – que causam a insónia, o peso no peito, a
dificuldade em respirar, os tremeliques nas pálpebras e a vontade de
mudar tudo sem estarmos realmente dispostos a tal – preservam a
ilusão de que sofremos mais do que os outros.
Enfim, a bonança do eterno inverno da
Razão que é isso mesmo: eterno. Não haverá primavera e
renascimento, apenas uma enrodilhada existência mundana e passageira
que, entre encontros e desencontros, nos encaminha à desejável
quietude do que é surdo, intocável e indolor – eis a esperança
de conseguirmos viver, sempre inquietos, até lá, pois a vacuidade e
a indiferença são irrevogáveis.
Cara a cara num espelho, como se
estivéssemos fora do nosso corpo, aceitemos que somos uma porta
escancarada, um convite imutável, à serenidade do esquecimento e da
morte.
(16/09/2025)