sábado, 1 de novembro de 2025

Terramoto de Lisboa, 1755: o abalo também foi filosófico

Em todas as cruzes
Tábuas partidas
Quarenta igrejas
Caídas
E dos conventos
Nem um lamento
Nem um sinal de vida
Todos os santos não chegaram
Faz dia em Portugal!*


Na manhã de 1 de novembro de 1755, Lisboa foi arrasada por um terramoto, seguido de um maremoto. Sendo o Dia de Todos-os-Santos, as ruas e as igrejas estavam cheias de fiéis, o que contribuiu para o elevado número de mortos, que varia entre 10 e 50 mil. Cerca de 10 mil edifícios ficaram reduzidos a escombros. Lisboa tremeu, ardeu, inundou e ruiu.

Portugal podia já ser falado por toda a Europa desde pelo menos o Séc. XV, devido à expansão para o Norte de África e pela descoberta de novos mundos a oriente e a sul, mas nunca fora tão discutido como a partir daquele fatídico 1º de Novembro. Para além de se considerar que a data marca o nascimento da sismologia moderna, os debates filosóficos foram o regalo dos grandes pensadores da época, como Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant. É que até então, a Humanidade, a viver sob o jugo da Inquisição, relacionava este tipo de desastres à causa divina, mas o Iluminismo ia mudar a Europa.

Voltaire, um defensor da liberdade de expressão e duro crítico da Igreja Católica, utilizou esta catástrofe para atacar um alvo específico: a filosofia otimista de Leibniz e Alexander Pope, em que se defendia que este é o melhor dos mundos possíveis e que não nos podemos queixar dos males porque desconhecemos os grandes desígnios de deus, não havendo, portanto, maldade. Ora, no seu magnum opus “Cândido, ou o Otimismo” (1759), Voltaire, mestre da ironia, dedicou-se a desbaratar tais conceitos, ridicularizando sociedades, governos, teólogos e filósofos. E onde é que Lisboa entra nisto tudo? Logo no início do conto, quando Cândido chega a Lisboa no dia do terramoto. Crente de que a criação do universo foi operada por uma inteligência superior que pode ser conhecida através da Razão, Voltaire fere a Inquisição e a Igreja Católica com grande ironia e sentido cómico, escrevendo: «(…) Os sábios do país não encontraram meio mais eficaz, para prevenir uma ruína total, do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé; pois a Universidade de Coimbra tinha decidido que o espetáculo de queimar a fogo lento algumas pessoas, com as cerimónias e formalidades do estilo, era o segredo infalível para impedir a terra de tremer.»

Antes, em 1756, Voltaire já tinha atacado o otimismo com “Poema sobre o desastre de Lisboa”, em que pergunta, ironicamente, como é que a bondade de deus permitiu tal tragédia, rejeitando a ideia de que o mal não existe na governação divina. Escreveu: «Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios / Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias? / Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.» Mais à frente aponta diretamente aos seus adversários: «“Um dia tudo estará bem”, eis aí a nossa esperança; / “Tudo está bem hoje em dia”, eis aqui a ilusão.»

Sabido que Voltaire angariava algumas amizades - como a imperatriz russa Catarina, a Grande -, era mais propenso a ter inimigos. Um desses rivais era Rousseau, cujas ideias influenciaram profundamente o Direito e conceitos como Estado, poder e soberania, que nos chegam até à atualidade. Rousseau escreveu a Voltaire a “Carta sobre a Providência”, em que defende o otimismo, sem propriamente defender o mote de que este é o melhor dos mundos possíveis e dando um novo tratamento à questão do mal, deslocando-o de deus para o homem. Rousseau chega ainda a entrar em território pessoal, ao referir a suposta hipocrisia de Voltaire por este se preocupar com um terramoto numa cidade como Lisboa, onde vivem as pessoas pelas quais temos consideração, e não querer saber dos tremores que ocorrem em África.

Tentativas de explicação divina à parte, Kant, que nos deu o imperativo categórico (algo como: realiza contigo mesmo antes de impor um princípio aos outros), pretende ser mais empírico e científico em vários textos que desenvolveu sobre o terramoto de Lisboa. Achando que o subsolo era oco, tamanha a facilidade com que tudo tendia a desabar, Kant aconselha a não se construir mais ao longo do rio Tejo, já que é esse curso de água que dita a direção dos tremores em Lisboa, não nos esquecendo que, e auxiliando-nos em registos, a cidade já tinha sofrido quase uma dezena de abalos nos últimos quatro séculos. Para Kant, a Humanidade deve adaptar-se à Natureza e não o contrário. E sublinha também a falta de racionalidade: «Como o terror lhes rouba a reflexão, julgam que estas grandes desgraças são das tais que não se podem minorar por qualquer precaução e supõem que a dureza do destino só pode ser abrandada por uma submissão cega e entregam-se completamente à misericórdia ou à cólera divina.»

Recorde-se ainda as palavras de Johann Wolfgang von Goethe, nome maior da literatura alemã, que, crescido numa família luterana, escreveu em adulto que a sua fé foi abalada quando, logo aos seis anos de idade, soube dos acontecimentos em Lisboa: «Talvez o Demónio do Medo nunca tivesse difundido tão rápida e poderosamente o seu terror sobre a Terra.» De facto, o medo instalou-se, com sermões fanáticos por toda a Europa e com discursos inflamados sobre a ira e a vingança de deus a abaterem-se sobre os pecadores. Contudo, a Ciência e o novo pensamento prevaleceram, despertando nos mais iluminados uma viragem no seu raciocínio outrora limitado por deus.

De 1 de novembro de 1755 ficam os mortos, o apocalipse anunciado como inevitável ou as ruínas do Convento do Carmo, mas também o renascimento da Lisboa pensada por Marquês de Pombal, que ainda hoje se vislumbra, e o início da ideia de que a Ciência se sobrepõe à Religião. E no passado dia 26 de agosto [de 2024], a Terra lembrou-nos que aquele Dia de Todos-os-Santos, agora tão longínquo, pode voltar a acontecer.


(Publicado originalmente no jornal "O Ilhavense", nº 1360, de 1 de novembro de 2024)
* Moonspell, faixa "Todos os Santos", do álbum "1755" (2017)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

a música extrema contada em crimes e mitos

suicídios, homicídios,
depressão, ritualismo, fanatismo, raptos
e um eclipse lunar


Gorgoroth, Mayhem, Gaahl e Faust
Em 2004, os Gorgoroth passavam por Cracóvia, na Polónia, para darem um dos concertos mais míticos da história do black metal: arame farpado, figurantes nus pendurados em cruzes e cabeças de ovelha decepadas. Foram acusados de blasfémia e crueldade animal, sendo que a primeira terá tido mais força por algo tão extremo ter acontecido no país natal do papa João Paulo II. Os Mayhem também o fizeram, com cabeças de porco, mas isso é um pormenor ao lado dos homicídios e suicídios. Dead (vocalista) suicidou-se em 1991 - primeiro cortou os pulsos e a garganta, depois disparou um tiro na cabeça. Euronymous (guitarrista), ao encontrar o cadáver, tirou fotos ao corpo do colega, originando a famigerada capa da bootleg "The Dawn of Black Hearts" (1995) - nada disto com o consentimento de Necrobutcher (baixista), que saiu dos Mayhem temporariamente. Varg Vikernes, de Burzum e por pouco tempo em Mayhem, também envolvido nos incêndios das igrejas norueguesas, assassinou Euronymous, à facada, em 1993, depois de um desentendimento no apartamento da vítima. Voltando a Gorgoroth, o ex-vocalista Gaahl ficou igualmente conhecido por torturar um homem durante várias horas. A vítima chegou a afirmar que o músico começou, a certa altura, a coletar o sangue num copo. De outra banda seminal do black metal, Faust (Emperor) não gostou de ser assediado por um homossexual, de nome Magne Andreassen, acabando por matá-lo em 1992.

Jon Nödtveidt e o suicídio ritualista
Líder dos extintos Dissection, Jon Nödtveidt era mais do que um músico. Após "Storm of the Light’s Bane" (1995), o sueco seria condenado, em 1997, a dez anos de prisão (tendo cumprido apenas sete) por ter participado no homicídio de Josef ben Meddour. De volta à liberdade em 2004, Jon envolver-se-ia com a Misanthropic Luciferian Order, uma seita que, com os seus escritos, influenciou o guitarrista/vocalista a compor "Reinkaos" (2006). Tiraria a própria vida a 13 de agosto de 2006, com um tiro, mas não foi um mero suicídio. O ato terá acontecido dentro de um círculo de velas, e ao lado do corpo foi encontrada uma grimória satânica (considerada a Liber Azerate), cenário que o guitarrista Set Teitan viria a tornar público quando mencionado que se tratava antes da Bíblia Satânica, de Anton LaVey. Provavelmente tratando-se de um ato programado, Jon Nödtveidt considerava que «o satanista decide a sua própria vida e morte, preferindo morrer com um sorriso nos lábios quando atinge o pico da sua vida, quando já realizou tudo (...). O satanista morre forte, não de idade, doença ou depressão, e escolhe a morte em vez da desonra! A morte é o orgasmo da vida!» (in “Metallion: The Slayer Mag Diaries”, de Jon Kristianssen)

Stalaggh usam doentes mentais como vocalistas
Anónimos e passados dos carretos, Stalaggh é dos projetos dark ambient/noise mais interessantes da história da música extrema. Um artigo da Metal Injection, de 2011, até refere que o grupo raptou pacientes mentais para gravar as vozes de "Projekt Misanthropia". Se calhar não foi bem assim, mas mesmo que tudo seja alinhavado com as instituições psiquiátricas, a intenção para o álbum "Vorkuta" continua a não deixar de ser fantástica e horrenda ao mesmo tempo: numa entrevista concedida à Noisey, em 2013, um dos membros conta que decidiram usar os berros/gritos de crianças para o referido disco, porque têm «uma forma fascinante de gritar». Contou ainda que uma das meninas estava em tamanho trance que começou a sangrar dos dedos por raspar com as unhas no chão. Mito urbano? A História também se alimenta de rumores.

Nattramn, o mãos de porco
De mito urbano em mito urbano chegamos a Nattramn, vocalista/letrista dos suecos Silencer. Mesmo que "Death - Pierce Me" (2001) seja um disco muito badalado no nicho do depressive suicidal black metal, é crível que o hype à volta da banda não venha exatamente da música, mas da insanidade (verdadeira ou não) de Nattramn. Encarcerado num hospital psiquiátrico após, alegadamente, ter tentado matar uma menina de cinco anos com um machado, o sueco é conhecido pelas próteses que lhe conferem mãos de porco. A sua paixão por suínos é tanta que, em 2011, lançou o livro "Pig's Heart" (original "Grishjärta"), que consiste em poemas, textos curtos e letras de músicas. As cópias existentes são assinadas pelo próprio, perguntando: com que mãos?

Músico tailandês assassinado por «manchar o satanismo»
Tínhamos acabado de entrar em 2014, mas Samong Traisattha (aka Avaejee) não mais passaria tempo neste mundo. O baixista/vocalista dos tailandeses Surrender of Divinity foi assassinado em janeiro desse ano por um fanático que, para além de detestar budistas, cristãos e muçulmanos, queria pôr termo à vida levando com ele alguém que manchasse o satanismo. O feliz contemplado foi Avaejee, que começou o encontro com umas bebidas e acabou com 30 facadas no corpo. Antes da ocorrência, o criminoso terá escrito no Facebook: «Se não o matar, tenho a certeza que alguém o fará.»

Tafofilia de Macabre
Taphophilia [do grego τάφος (túmulo) + φιλία (amizade)] é uma obsessão por cemitérios e funerais - é isto que Macabre, de Mortis Mutilati, diz sofrer. Recorrendo aos arquivos da extinta Against (predecessora da Ultraje Magazine e da Metal Hammer Portugal), o músico, aquando do lançamento de "Mélopée Funèbre" (2015), foi questionado se esta condição era metafórica ou real. Respondeu: «Tafofilia não é nada metafórica. Passo muito tempo em cemitérios, a olhar para túmulos e a questionar quem eram as pessoas que lá estão e como é que morreram... Principalmente se são crianças ou jovens como eu. É uma obsessão. Sobre Macabre: somos um só. É uma extensão da minha personalidade, a minha parte criativa.» Mas há mais: morte, erotismo e necrofilia andam de mão dada no conceito de Mortis Mutilati - no booklet de “Mélopée Funèbre” até encontramos a Morte a masturbar uma jovem senhora. «Morte e erotismo são dois temas pelos quais tenho obsessão. É como se estivessem a fazer um 69 na minha mente, portanto é claro que não podia evitar o ponto de vista necrófilo. Para mim, arte é a ligação entre morte e erotismo, por isso quis dedicar um álbum a essa trindade.»

Kris Angylus: acne, depressão e uma mão lesionada
Em 2007, Kris Angylus e a sua esposa Monica "Dragynfly" Henson lançavam, com o projeto The Angelic Process, o álbum "Weighing Souls with Sand", um trabalho muito aclamado na cena doom/ambient/drone. Um ano depois, Angylus cometeria suicídio envolto em obscuridade. Numa declaração proferida pela sua companheira (falecida em 2023) podia ler-se que o músico sempre foi considerado clinicamente deprimido e por várias vezes tentou o suicídio. Por outro lado, a medicação que tomava para contrariar a acne causava-lhe dores de estômago, o que não lhe providenciava uma vida serena, e, para piorar, tinha sofrido lesões graves numa mão derivadas de um acidente de viação. A depressão, aliada ao facto de não conseguir tocar guitarra, levou o músico a pôr termo à vida em 2008.

Tójó e o último eclipse lunar do milénio
Meus conterrâneos de Ílhavo, os Agonizing Terror estavam a deixar a sua marca no underground português com as demos "Disharmony in God's Creation" (1995) e "Ways of Existence" (1997). Em agosto de 1999, a cidade ilhavense e o país acordaram em sobressalto com a morte horripilante, à facada, de um casal no lugar de Vale de Ílhavo. Depressa, a Polícia Judiciária ligou o crime ao filho Tójó, de 23 anos. Confessou ter agido sozinho, mas, posteriormente, acusou a companheira Sara, baterista nos Agonizing Terror, de o ter incitado moralmente. Alegadamente, pretendiam herdar a casa e ficar com os seguros de vida do casal. Como se já não bastasse o parricídio hediondo, a comunicação social aproveitou a existência da banda e o eclipse lunar, ocorrido naquela noite, para classificar tudo como um crime satânico. Tójó foi condenado a 25 anos de prisão. Saiu em liberdade, por bom comportamento, em 2017.


(Nota: estes meus textos foram originalmente escritos e publicados na Ultraje Magazine em 2017 e na Metal Hammer Portugal em 2019, tendo sido revistos e levemente alterados em 2025 para este post.)