sexta-feira, 31 de outubro de 2025
a música extrema contada em crimes e mitos
terça-feira, 21 de outubro de 2025
Bernardo Santareno nos Mares do Fim do Mundo
«fortes, valentes, humildes e maravilhosamente simples»
Há uns meses, já os dias começavam a ser longos, passou pela redação deste jornal um homem de noventas e muitos anos a querer oferecer-me um livro. «É sobre a pesca do bacalhau. O autor foi meu médico e era dramaturgo», disse-me. Livros e discos são sempre bem-vindos! Contudo, sem ser indelicado, a pressa de sair e ir onde tinha de ir fez com que não me prendesse muito à conversa. O homem foi à vida dele – velhote, de bicicleta e com duas muletas presas ao veículo – e eu também fui à minha. Durante o caminho até casa, olhei melhor para a capa, carcomida e com fita-cola a remendar, onde li o título “Nos Mares do Fim do Mundo” e o nome Bernardo Santareno. Por obra da coincidência, veio parar-me às mãos um livro de Bernardo Santareno. Bela prenda!
Sem querer, abri o livro pelo seu fim, onde está o índice das narrativas, e deparei-me com uma nota escrita a esferográfica: “Zé Ramalhete de Ílhavo / Louvado da Murtosa” à frente do título do respetivo texto, “A disputa”. E fiquei a matutar que a pessoa que me ofereceu o livro podia muito bem ser o Zé Ramalhete. Perguntei ao meu pai se conhecia alguém com aquele nome; disse-me que sim e até corroborou a idade e a bicicleta. O assunto esfumou-se da minha mente e, passado um par de semanas, aquele homem reapareceu. «Então, o livro?», perguntou. Ignorando a questão, contrapus com outra: «Você é que é o Zé Ramalhete da disputa?» «Sou eu, sou», devolveu. «Então, o Bernardo Santareno foi mesmo seu médico?», fiz nova pergunta, e aposto que com um brilho nos olhos por estar perante alguém eternizado em livro por um escritor admirável, mas algo obscuro – para não dizer esquecido. «Foi, foi, no bacalhau. Médico e dramaturgo», reafirmou.
Zé Ramalhete e Ílhavo
Descritos por Bernardo Santareno na dedicatória inicial como homens «fortes, valentes, humildes e maravilhosamente simples», Zé Ramalhete de Ílhavo e Louvado da Murtosa estavam a discutir, sem nunca pararem de trabalhar, há um bom bocado, seguindo-se uma ida à Casa do Leme para, junto do capitão, porem cobro àquilo. A disputa era simples, mas premente: um achava que era melhor escalador do que o outro, e vice-versa. O líder do navio acabou com a discussão mandando-os porta fora, pois era assim que «resolvia ele, sem parcialidade para qualquer das partes, estas contendas, verdadeiras tempestades em copos de água».
Zé Ramalhete foi ainda descrito desta maneira: «(…) de estatura média, ágil e vivo como um gato, continha gritos de Sol, a rebentarem-lhe nos negros olhos faiscantes, no riso dos dentes perfeitos, na pele crispada de frémitos morenos…» E mais, descobre-se depois que era, de facto, melhor escalador do que o seu rival: «O Ramalhete escala mil e vinte peixes em uma hora; o Louvado apenas… mil!», contou o capitão a Bernardo Santareno.
Desfolhando-se o livro, mais referências se encontram sobre as nossas redondezas, em que o autor escreve que «em todas as Gafanhas de Ílhavo, as mulheres amanham a terra. (…) Elas cavam, semeiam, ceifam e colhem: duramente, com sanha viril.»
Por entre relatos, heroicos ou macabros, sobre homens da Fuseta, da Nazaré, de Vila do Conde ou de Caminha, mais ilhavenses fazem parte das memórias do escritor. Em “O sonho”, é recordado que Zé Pinto, tripulante do “D. Dinis” e oriundo de uma das Gafanhas, desapareceu em dia de mar calmo depois de ter sonhado, como contou a Francisco Urze, que «corria pelo fundo mar, perfeitamente livre». Ou o capitão Cajeira (Caveira para os seus subalternos), que, apesar da sua fama autoritária narrada em “Os fantasmas da Gronelândia”, termina como alguém valoroso a capitanear o bacalhoeiro “Rio Lima”. Contra a vontade da tripulação, que recusava a ir aos mares da Gronelândia por superstições fantasmagóricas e por medo de lá ficarem presos no gelo, tornou-se a primeira embarcação portuguesa a pescar nessa zona.
Por outro lado, em “Antigamente”, surge um capitão sem nome apresentado como «uma peste, uma praga de Deus! Aquilo na era home, era o próprio diabo!…» Tantas fez que, numa das suas últimas viagens, a tripulação revoltou-se. Amarrado, esteve prestes a ser mandado borda fora, mas os revoltosos hesitaram. Em terra, nenhum dos tripulantes fugiu à ira do capitão e, um a um, foram desgraçados. Em alto mar, um pescador contou a Santareno que o dito cujo morreu em Ílhavo «há poucos anos». «Tinha uma nascida ruim, que, palmo a palmo, o foi minando todo… O alma do diabo dava urros que se ouviam lá longe, na estrada de Aveiro! Bem feito, bem feito.» Ato contínuo, um tal Zé da Avó acrescentou que se tratava de «um home mau, um danado», contando ainda que «durante três dias e três noites, antes de ele morrer, os corvos (…) não lhe desampararam a casa (…). Aquele tinha manhas com o demónio, senhor doutor!…»
Bernardo Santareno, o médico escritor
Nascido António Martinho do Rosário, em Marvila, Santarém, em 1920, o heterónimo Bernardo Santareno só surge na década de 1950. Médico formado pela Universidade de Coimbra, foi a bordo do navio “David Melgueiro”, em 1957, que escreveu grande parte de “Nos Mares do Fim do Mundo”. Embarcou ainda no “Senhora do Mar” e no navio-hospital “Gil Eannes” em 1958.
Filho de pai anticlerical e opositor do Estado Novo, Bernardo Santareno ficou no radar da polícia política em 1957, quando a sua peça de teatro “A Promessa” foi retirada de cena após a estreia, face ao escândalo que causa e por pressão da Igreja Católica.
Por entre várias obras, podemos destacar “O Crime de Aldeia Velha” (1959) e “A Traição do Padre Martinho” (1969). A primeira é inspirada num crime ocorrido em 1933, na freguesia de Soalhães, Marco de Canaveses, em que a jovem Arminda foi queimada viva por uma pequena turba que a acusava de estar possuída pelo demónio. A segunda é baseada no Cerco a Lourosa, ocorrido no município de Santa Maria da Feira em 1964, em que o real padre Damião estava em vias de ser transferido pela Igreja, mas o povo mostrou-se contra e um grupo de mulheres montou um sistema de vigias em defesa do sacerdote. A mando de Salazar, centenas de militares da GNR cercaram a localidade e, no processo, foram mortas duas jovens.
Com a PIDE sempre de olho em si, a peça “O Judeu” (uma alegoria à repressão) estreou apenas após a Revolução de 1974.
Homossexual discreto, intelectual de esquerda e afeto ao movimento neorrealista, Bernardo Santareno morreu em 1980, pouco antes de completar 60 anos.
(Publicado originalmente no jornal "O Ilhavense", nº 1358, de 1 de outubro de 2024)
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Stigmata, blood and gasoline
Assaltámos um banco e vamos pôr o mundo a arder...
...os dois, juntos.
Sonhei que assaltávamos um banco.
Estávamos de cara tapada com um lenço vermelho como os revolucionários zapatistas. As nossas botas estavam imaculadamente engraxadas. As minhas calças pretas sem um único vinco. As tuas meias semitransparentes que não escondem todas as tatuagens, também pretas, subiam-te pelas pernas saídas do teu vestido curto. A minha camisa, enfiada dentro das calças seguradas por um cinto de couro com fivela prateada, era aquela cinzenta ao xadrez. A tua camisola tinha o nome de uma banda punk. Pus ainda a minha boina quando saímos do carro, e tu não falhaste com o teu longo e solto cabelo negro.
Quando entrámos no edifício atulhado de gente, quis levar tudo à frente, disparar a caçadeira contra tudo e todos, berrar a plenos pulmões, meter medo e impor-me. Mandaste-me um calduço e disseste: «estás parvinho?» Ri, porque imagino-te a fazer isso, e lá fomos roubar.
Saímos dali com sacos de dinheiro ao ombro, sem um único grito e sem um único tiro – e ainda tocámos os lábios numa conversa mais silenciosa, agachados atrás do balcão. Abandonámos cheios de estilo, já sem os lenços na cara, a olhar um para o outro – como um filme, até caminhámos em câmara lenta e ao fundo ouvia-se uma batida sonora que não me era estranha...
Não sei mais. Acordei, esbocei um sorriso e até ri. No meu subconsciente cometemos um crime e soube bem.
Passado largos minutos, já regressado ao mundo real e à decadência do Oeste, descobri sem querer que aquela batida – a banda-sonora do nosso assalto –, era o acompanhamento destes versos.
Estou a tentar escrever isto o mais natural possível e a tentar encontrar um fio condutor que faça sentido entre nós, o sonho e a música. Está complicado, se calhar devia apagar tudo e esquecer.
Mas porra... Estigma (dito stigmata tem outro impacto, eu sei), sangue, gasolina e fogo... Tudo na mesma frase – como esquecer? E ainda por cima assaltámos um banco!
Pensar que podes ser a minha Bonnie e eu o teu Clyde é tão estúpido quanto bonito e excitante. Só que no fim não somos emboscados e mortos – também não ficamos ricos, mas pelo menos sobrevivemos.
No topo de um dos prédios mais altos de uma das nossas cidades, vimos que incendiámos tudo à nossa volta com rios de gasolina. Não nos importamos, e até gostamos – a paisagem infernal e crepitante é linda e destrutiva. Estou desfeito e a sangrar, levei porrada e um tiro ou outro, mas não me queixo, nem falamos sobre isso – tu estás bem e isso é que importa. Não falamos sobre nada sequer – sentados num parapeito sem grades, só me dás a mão enquanto vislumbramos as gigantescas labaredas a chegar ao mar, enquanto sorrimos a ver arranha-céus a ruir e enquanto não queremos saber da desgraça que acabámos de acometer ao mundo.
As cicatrizes que estas e outras ideias deixam (umas mais verdadeiras e possíveis, outras mais estapafúrdias e insanas) são apenas os estigmas nada religiosos, muito profanos e ímpios que o ofício de imaginar me oferece – e tenho de lidar. Mas não me interessa o apocalipse do mundo e da vida se pudermos continuar a sonhar em roubar bancos e a pôr o mundo a arder – os dois, juntos.
No fim, esteja eu como ou onde estiver, dirás sempre que vai ficar tudo bem. E se houver um dia em que não mo digas, tenho a certeza que aquele teu olhar oculto, que nunca apanho mas conheço, por entre os ombros e as cabeças da multidão à minha procura, vai fazer-te chegar até mim.
E quando nos virmos sozinhos será como se estivéssemos outra vez naquele parapeito alto e perigoso, a ver as cidades a arruinarem-se enquanto sonhamos e não dizemos uma palavra.
Sempre que quiseres voltar a tapar a cara com um lenço vermelho e ir assaltar um banco, serei o primeiro a acompanhar-te. E as manhãs de amanhã serão sempre melhores do que as de ontem.
(08/10/2025)